Eduardo Baszczyn
porque, há muito, eu erro a mão. a dose. esqueço a receita do equilíbrio. o quanto uso das partes que brigam dentro de mim. há muito, eu me confundo. porque metade não tem medo e levanta os braços, na descida da montanha-russa. olhos abertos, enquanto outra acha melhor enfrentar a queda com as mãos na barra. segurando forte. espremendo os dois olhos, fechados, desde o começo do percurso. metade prefere brincar na beira da praia. no raso. enquanto outra não vê problemas em pular dezenas de ondas e nadar onde a pequena bandeira vermelha, agitada pelo vento, avisa sobre o risco. sobre o possível afogamento. porque, há muito, eu erro a receita do equilíbrio. uso a parte que não deveria na hora em que não poderia. me confundo com as metades que brigam dentro de mim. porque parte acelera na estrada, no momento da curva fechada. pé direito até o fim, enquanto outra freia, bruscamente, ao ver a primeira placa. seta torta, avisando sobre o perigo. metade não suporta a burrice, a pequenez, a lerdeza. outra, sempre calada, tolera a banalidade. engole a ignorância. convive com a mediocridade. há muito, eu erro a mão. a dose. me confundo com o que devo usar. porque metade briga. explode. dedo apontado na cara, enquanto outra se recolhe, quieta, debaixo da cama. no quarto fechado. no tudo escuro. metade berra. outra sussurra. tenho uma parte que acredita em finais felizes. em beijo antes dos créditos, enquanto outra acha que só se ama errado. tenho uma metade que mente, trai, engana. outra que só conhece a verdade. uma parte que precisa de calor, carinho, pés com pés. outra que sobrevive sozinha. metade auto-suficiente. mas, há muito, eu erro a mão. a dose. esqueço a receita do equilíbrio. me perco. há dias em que uso a metade que não poderia. dias em que me arrependo de ter usado a que não gostaria. porque elas brigam dentro de mim, as metades. há algumas mais fortes. outras ferozes. há partes quase indomáveis. metades que me fazem sofrer nessa luta diária. Não deixar que uma mate a outra.
Tropeço
Há tanto tempo não usado, encontrei o amor, sem querer. Ontem. Jogado debaixo da cama. Empoeirado. Sem caixa, bula ou manual. Um amor, assim, abandonado. Sujo. Rasgado. Fóssil soterrado. Navio afundado há anos. Casarão com tábuas pregadas nas janelas. Lençóis brancos sobre os móveis. Um amor acostumado com o escuro. Com o frio do quarto fechado. Com a passagem rápida de um inseto no meio da madrugada. Um velho amor largado. Pronto pra ser reciclado. Um amor procurado por toda casa nos lugares errados. Nos armários limpos. Entre taças. Louças. Dentro de caixas fechadas com laços. Sob tapetes varridos. Cantos desinfetados. Um amor chamado no grito. No gemido da febre. No cochicho da oração. Um amor sumido. Necessitado. Um amor que apareceu quando quis. De repente. Em um lugar inesperado. Há tanto tempo não usado, eu, ontem, tropecei no amor. Empoeirado. Sujo. Rasgado. Abandonado debaixo da cama. Um amor que talvez nem funcione mais.
(...) mas um dia, você pode ter certeza, o desequilíbrio irá atrapalhar essa sua destreza. Interromper suas acrobacias. Seus truques. Manobras. Um dia, esse seu número chegará ao fim, de repente. Espetáculo encerrado, de uma hora para outra, pelas bolas coloridas espalhadas pelo chão. Um dia, enquanto estiver recolhendo uma por uma, entre tantas vaias, você irá se arrepender. Jurar nunca mais fazer malabarismos por tanto tempo com os sentimentos de quem já o aplaudiu.
"A regra é simples, como nos livros de matemática da infância:
você pertence ou não pertence.
É ciência."
Há dias em que é impossível transformar a dor em beleza.
fazer dela mosaicos coloridos. Há dias em que cacos são apenas cacos.
PARA UMA SEPARAÇÃO
não, não precisa se levantar, não. você pode ouvir tudo isso aí mesmo, do sofá. e pode fechar também esse sorriso: eu não estou de volta. está ouvindo? eu dirigi até aqui, passei pelo seu porteiro curioso, subi por esse seu elevador cheirando a mofo para lhe dizer exatamente isso: que eu não estou de volta. que você pode ficar com tudo. com seus livros empilhados. com seus discos mal guardados. com suas plantas quase-mortas, por não serem mais regadas. você pode ficar com tudo. com esse seu vaso de flores amarelas de plástico, empoeiradas pelo que vem da janela entreaberta. pelo que vem com o cinza dessa cidade imunda. fique com tudo. com esse seu apartamento minúsculo. com essa caixa de fósforos do décimo-sexto andar. não quero nada. e só achei que deveria saber que você pode ficar com tudo. com os meus beijos e com os meus apertos, inclusive. com os meus carinhos feitos quando eu, tolo, acreditava que você era o que eu andava precisando. nada. não quero nada e só achei que você deveria saber que esta é a última vez que me viu por esse olho-mágico da porta, antes de me espiar por ele, de costas, indo embora, de uma vez por todas, por aquele corredor com marcas de mãos pretas pelas paredes. só achei que precisava lhe avisar que não quero mais nada. que você precisava saber que esta é a última vez que estou pisando nesse seu carpete desfiado. olhando para todo esse caos, que um dia chegamos a chamar de paraíso. não, não precisa se levantar, não. você pode ouvir tudo isso daí, com essa bunda grudada no sofá. eu só passei mesmo pra dizer que não quero nada de volta. nem aqueles beijos todos. eu poderia fazer com que cuspisse um por um, agora mesmo, de joelhos sobre o tapete. mas eles não vão me fazer falta e eu estou com um pouco de pressa. me desculpe, mas eu só passei por aqui realmente pra avisar: não, eu não estou de volta.
em vez de tropeçar nas pedras, você bem que podia entender que elas são pistas, deixadas sobre o chão. O caminho até aqui.
desde que foi embora, o mesmo ritual: caixa sobre o colo, eu tiro o laço, desfaço a fita, jogo a tampa e não me animo com o presente. desde que foi embora, eu apenas desembrulho o meu dia. sem etiqueta de troca, não sei o que faço com ele.
eu me arrebentei, assim, porque o nó era fraco. frouxo. mal dado. eu afundei, em segundos, porque no meu casco havia um buraco milimétrico por onde o mar entrou aos poucos. inteiro. eu caí com o primeiro vento porque não havia tijolos. eu era construção mal feita. erguida na pressa. madeira com pregos mal batidos. fachada. eu derreti ao sol porque era de plástico. sumi no sopro porque era pó. eu me quebrei na primeira queda porque, por dentro, não havia mais nada. eu me sentia forte, sem saber que já era oco.
gangorra
e do outro lado, sempre alguém mais leve. olhando de cima, com as mãos na barra. sorriso no rosto. e você do lado oposto. afundado. sapatos sujos de terra. joelhos arranhados no chão. embaixo. sempre descido na outra extremidade do brinquedo. querendo saber o que carrega de tão pesado assim por dentro.