Cristiane Sobral

Encontrados 6 pensamentos de Cristiane Sobral

Tente me Amar

Tente me amar
Enquanto a chuva não vem
Depois que o leite derramar
Ame como nunca amou ninguém

Tente me amar
Sem pensar em voltar
No balanço do trem
Esperando a hora certa
De fazer um neném

Tente me amar
Sem desculpas pra me deixar
De anel no dedo
Ame completamente sem medo

Tente me amar
Sem me confundir com ninguém
Enquanto seu lobo não vem
Tente me amar
E consiga.

Inserida por pensador

Retina Negra

Sou preta fujona
Recuso diariamente o espelho
Que tenta me massacrar por dentro
Que tenta me iludir com mentiras brancas
Que tenta me descolorir com os seus feixes de luz

Sou preta fujona
Preparada para enfrentar o sistema
Empino o black sem problema
Invado a cena

Sou preta fujona
Defendo um escurecimento necessário
Tiro qualquer racista do armário
Enfio o pé na porta e entro

Inserida por pensador

Não Vou Mais Lavar os Pratos

Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler. Abri outro dia um livro
e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira. Nem arrumo
a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi
a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética,

A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página
dos livros, mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.

Qualquer coisa.
Não vou mais lavar. Nem levar. Seus tapetes
para lavar a seco. Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito. Agora que comecei a ler quero entender.
O porquê, por quê? e o porquê.
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar...
Olha que feijão sempre demora para ficar pronto.
Considere que os tempos são outros...

Ah,
esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida,
passou do alfabeto.

Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas
e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira
e espalhar o pó daqui para lá e de lá pra cá.
Desinfetarei minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
meu tênis do seu sapato,
minha gaveta das suas gravatas,
meu perfume do seu cheiro.
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada, e olho a sujeira
no fundo do copo.
Sempre chega o momento
de sacudir,
de investir,
de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea
escrita em negro maiúsculo,
em letras tamanho 18, espaço duplo.

Aboli.
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata,
Cozinha de luxo,
e joias de ouro. Legítimas.
Está decretada a lei áurea.

Sina

Cuspiram na minha cara
Rindo alto
Porque uma preta
Nesse país
Não vale nada!

Por que eu não reagi?
Eu não sabia que era gente
Meu senhor
Eu não sabia

Eu era temente à Deus
Mas mesmo na igreja
Sempre fui humilhada
Uma preta nessa terra
Onde Jesus foi pintado
Branco, de olhos azuis
Como pode deixar de lado sua cruz?

Inserida por pensador

O Meu Pente

O meu pente é diferente
funciona muito bem
não é um pente ruim!
é próprio para o meu pixaim

Não deboche
não provoque
vou deixar você sem jeito
espetar o seu preconceito

Sim, sou negra
negra do cabelo puro
agora vou cutucar seu preconceito
com meu triunvirato da diferença

Meu cabelo não é duro
afirmo a dialética da percepção
nem bom, nem ruim, nem melhor
a alteridade de ser quem eu sou

Diferente, o meu pente
quase um tridente
transforma a ordem
sem fazer desordem

Diante do princípio do caos
convida o sistema
a refazer as suas concepções
para desafiar a história única.

Inserida por pensador

A Mão e a Luva

Eu hoje comi um poema com pão
Seco
Ontem não fiz nenhuma refeição
Amanhã talvez uma sopa de letrinhas
Há dias que não brota poema algum
Acordo e mantenho o jejum
Até que anoiteça
Mas as palavras um dia brotam
Como água dos rios
Como chuva
Há poemas que caem
Há poemas que cabem
Como uma luva
E alimentam a alma.