Beatriz de Andrade Vieira
Nós imaginamos uma vida que pertece a outra pessoa da mesma forma que um terceiro imagina ter a nossa vida
Pode parecer bom, mas ter tudo o que se deseja, é sinônimo de não sentir o gosto da vitória. Onde se acha a conquista, se nunca houve luta?
Um fato interessante sobre livros é que ficamos triste por não poder vivenciá-los. Já em outros casos, ficamos felizes por esse mesmo motivo.
DO AUTOR
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Era descendente de escravos e filho de pais mestiços. O preconceito contra os negros foi um tema constante em suas obras. Leitor ávido, se destacou com a obra 'Recordações do Escrivão Isaias Caminha' em 1909. Dois anos depois, lança seu maior sucesso: Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Além das dificuldades financeiras, sofria de crises de depressão e alcoolismo. Foi internado no hospício duas vezes. Morreu de ataque cardíaco aos 41 anos.
DA PEÇA
O TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA revela uma visão crítica da vida política, social e cultural do Brasil, através de uma linguagem despojada e inconformista. Não deixa de expor o sofrimento dos mulatos, em oposição a recente libertação dos escravos, a submissão do país aos modelos europeus, o militarismo estreito e nocivo, a fragilidade da economia do país e até mesmo a condição da mulher naquele momento.
Todos esses temas, que parecem tão familiares ao Brasil de hoje, estão presentes no livro, revelando uma posição inovadora, que foge ao rigor formal característico de seu tempo.
O resultado é uma imensa crônica da vida brasileira do final do século XIX e início do século XX. E, de certo modo, do Brasil do século XXI.
A LIÇÃO DE VIOLÃO
Quando Policarpo entra em casa é a irmã quem o recebe, perguntando:
- Janta já?
-Ainda não, espere um pouco Ricardo que vem jantar conosco.
- Mano, você precisa tomar juízo. Um homem de idade e respeitável como você é, andar metido com esse seresteiro não é bonito! Ainda mais andar com instrumento de vadio!
-Mas você está muito enganada, Adelaide. É preconceito supor que todo homem que toca violão é um desclassificado. É muito importante não deixarmos morrer nossas tradições, as tradições genuinamente nacionais.
Contrariada, Adelaide retira-se para receber Sr. Ricardo coração dos outros. Tal era violonista e gozava da estima geral da alta sociedade suburbana, uma sociedade muito especial, mas que só era alta nos subúrbios. Policarpo Quaresma desejava ter aulas de violão e Ricardo era a pessoa perfeita para ensinar porque ficava encantado pelo instrumento desprezado. Já seu discípulo ficava extasiado pelo som do violão e também pela brasilidade que tudo aquilo representava.
DAS REFORMAS
A força de ideias e sentimentos contidos em Quaresma já havia surpreendido a muitos, mas nada tão absurdo quanto as reformas radicais.
[Eu, Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil, certo também de que tal empréstimo desvaloriza nossas raízes - usando do direito que confere a Constituição, venho pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro.
Além, em minha casa de campo, Sossego, pude estar em contato com as terras férteis do nosso Brasil. Mas digo, caros compatriotas: é necessário ocupar. Há tanta terra produtiva desocupada que poderíamos produzir muito. A mudança está para acontecer, basta olhar para a Pátria amada e trabalhar a fim de torná-la a maior potência do mundo!]
As palavras de Quaresma foram recebidas de diferentes formas: uns indignados pelo despudor, outros riam-se a ponto de chorar, outros sequer davam ouvidos. Ricardo Coração dos Outros, vendo o fracasso do amigo, disse:
- É bom pensar, Quaresma, sonhar consola.
- Consola, talvez, mas faz também nos torna diferente dos outros; cava abismo entre os homens - disse, cabisbaixo.
DO FINAL
Em um dos seus últimos atos de patriotismo, Quaresma decidiu se alistar e lutar na Revolta da Armada. Ficar na pátria amada, morrer pelo Brasil, eis o lema do nosso herói. Seu desempenho foi até então pouco do que deseja fazer. Por isso, na primeira oportunidade que teve, decidiu relatar ao Marechal Floriano Peixoto suas pretensões.
- V. Exª como é fácil erguer este país! Desde que se cortem os erros e obstáculos de uma legislação defeituosa...
O marechal respondia pouco e olhava ao redor, revelando sua apatia. À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Mas Floriano apresentava sinais de um aborrecimento mortal e disse:
- Você, Quaresma, é um visionário.
..
Não só de visionários que se faz o Brasil, por isso, pouco depois, Quaresma foi preso. Sozinho, abandonado por seus ideais, pensava "O que fiz da minha vida? Não me casei, não vivi, nem tive filhos." Mas teve fé, esperança em um país fadado ao domínio de despretensiosos. Amou o Brasil mais do que qualquer coisa e é assim que foi recompensado.
"Aos pragmáticos, o poder. Aos sonhadores, as balas! Eis o meu triste fim"
O Menino e o Espelho
Ele olha o reflexo.
O reflexo o olha.
Ele deseja coragem.
Ensaia o discurso.
Decora as palavras.
O espelho o encoraja.
O espelho aprova.
O espelho silencia.
Ele ganha coragem.
Dorme.
Acorda.
Espera.
A oportunidade surge.
Ele vai.
Ele diz que a quer.
Ele a tem.
Ele questiona.
Consome.
Faz feliz.
Machuca.
Descarta.
E volta ao espelho.
Mas o reflexo, agora, o evita.
Porque o espelho sempre soube.
Só que dessa vez,
ele não precisa mais da coragem do espelho.
Descobriu que, para ferir,
não é preciso coragem.
É só não olhar.
É só não voltar.
O espelho ficou vazio.
E o menino, cheio demais para caber nele.
Clube dos Menores Homens que Existem no Mundo
No clube dos menores homens que existem no mundo,
eles se reúnem aos sábados,
e planejam como podem destruir
o coração de mulheres que são mais mulheres do que eles são homens.
Mulheres que são melhores que eles.
Financeiramente, educacionalmente, emocionalmente.
Mulheres que são capazes de amar e se doar por eles.
Mulheres que morreriam por seus pecados.
Mulheres que cruzariam o país por eles.
No clube dos menores homens que existem no mundo,
eles não conseguem cumprir promessas,
não conseguem acordar antes das 10h,
não conseguem ser financeiramente responsáveis,
não conseguem cozinhar, nem comer bem.
Não conseguem.
Não conseguem sequer ter uma ereção.
Eles planejam e vivem crimes após picotar corações de mulheres.
Mas eles não serão condenados por isso.
Eles são tão pequeninos
que, ao serem pegos,
conseguem se esgueirar e sair pelas grades.
São tão pequenos que se escondem nos bueiros.
E as mulheres que matam precisam usar lupas para enxergar suas qualidades.
Precisam se diminuir para caber.
Mas eles são tão pequenos que não aguentam o peso.
Mas as mulheres que eles matam se culpam pelas suas mortes.
Porque elas são tão benevolentes que pensam:
“É só um pequeno homem aprendendo a amar.”
E a partir disso, todos os erros são justificáveis.
Mas as mulheres que eles matam conseguem esquecê-los,
mas nunca perdoá-los.
Porque são tão pequenos,
que cabem em notas de rodapé nas histórias que contaram.
Cabem em caixas de fósforo junto com promessas quebradas.
Cabem em silêncios constrangidos nas rodas de conversa.
Cabem em apelidos ridículos e piadas internas que ninguém mais ousa repetir.
Tão pequenos que, no final,
Só há um aviso velado:
“Cuidado, ali já houve um homem menor que o mínimo aceitável.”