Artur da Távola

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Rende-te à natureza de quem amas e esta começará a te obedecer.

Certos graus de amor só são perceptíveis a partir da impossibilidade de se exercerem ou da ameaça de não poderem jamais vir à tona.

Casais separados conseguem certas intensidades amorosas impossíveis na vigência do matrimônio.

Afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. E o mais independente. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido. Ter afinidade é muito raro. É conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas, quanto das impossibilidades vividas.

Artur da Távola

Nota: Trecho de um texto do autor.

Falam de tudo. Da moral, do comportamento, dos sentimentos, das reações, dos medos, das imperfeições, dos erros, das criancices, ranzinzisses, chatices, mesmices, grandezas, feitos, espantos. Sobretudo falam do comportamento e falam porque supõem saber. Mas não sabem, porque jamais foram capazes de sentir como o outro sente. Se sentissem não falariam.

Artur da Távola

Nota: Trecho de uma crônica de Artur da Távola.

AMOR QUE NÃO COBRA

O amor maduro não é menor em intensidade.
Ele é apenas quase silencioso. Não é menor em extensão.
É mais definido, colorido e poetizado.
Não carece de demonstrações: presenteia com a verdade do sentimento.
Não precisa de presenças exigidas: amplia-se com as ausências significantes.

O amor maduro somente aceita viver os problemas da felicidade.
Problemas da felicidade são formas trabalhosas de construir o bem e o prazer.
Problemas da infelicidade não interessam ao amor maduro.

O amor maduro cresce na verdade e se esconde a cada auto-ilusão.
Basta-se com o todo do pouco.
Não precisa nem quer nada do muito.
Está relacionado com a vida e a sua incompletude, por isso é pleno em cada ninharia por ele transformada em paraíso.
É feito de compreensão, música e mistério.
É a forma sublime de ser adulto e a forma adulta de ser sublime e criança.
O amor maduro não disputa, não cobra, pouco pergunta, menos quer saber. Teme, sim. Porém, não faz do temor, argumento.
Basta-se com a própria existência.
Alimenta-se do instante presente valorizado e importante porque redentor de todos os equívocos do passado.
O amor maduro é a regeneração de cada erro.
Ele é filho da capacidade de crer e continuar, é o sentimento que se manteve mais forte depois de todas as ameaças, guerras ou inundações existenciais com epidemias de ciúme.

O amor maduro é a valorização do melhor do outro e a relação com a parte salva de cada pessoa.
Ele vive do que não morreu mesmo tendo ficado para depois.
Vive do que fermentou criando dimensões novas para sentimentos antigos, jardins abandonados cheios de sementes.
Ele não pede, tem.
Não reivindica, consegue.
Não persegue, recebe.
Não exige, dá. Não pergunta, adivinha.
Existe, para fazer feliz.
Só teme o que cansa, machuca ou desgasta.

A perda do pai começa a nos ensinar o valor do tempo. O que não fizemos, a visita e o gesto adiados, a palavra não dita, a compreensão não exercida, o papo azeda, a advertência desdenhada, o convite abandonando sem resposta, o interesse desinteressado, tudo isso volta, massacrante, cobrando-nos o egoísmo. O tempo deixa de ser exercício de desperdício gratuitos e começa a se transformar num bem maior: o que ensina a arte de uma convivência que com ele nunca se soube exercer e, já, tempo não há de recuperar.

Não se meu Deus é macro, talvez ele seja micro, silêncio e trovão.

Inserida por lucijordan

O doloroso na política é que, nela, ninguém procura se ampliar na direção do melhor do outro, e sim reduzi-lo à dimensão menor de quem julga.

O melhor da gente ninguém sabe.

O novo não é o contrário do velho. O novo é o oposto das prisões que nos impomos.

Ser Fluminense é entender esporte como bom gosto. É ser leal sem ser boboca e ser limpo sem ser ingênuo. Ser Fluminense é aplicar o senso estético à vida e misturar as cores de modo certo, dosar a largura do grená, a profundidade do verde com as planuras do branco.

Ser Fluminense é saber pensar ao lado de sentir e emocionar-se com dignidade e discrição. É guardar modéstia, a disfarçar decisão, vontade e determinação. É calar o orgulho sem o perder. É reconhecer a qualidade alheia, aprimorando-se até suplantá-la.

Ser Fluminense não é ser melhor mas ser certo. Não é vencer a qualquer preço mas vencer-se primeiro para ser vitorioso depois. É não perder a capacidade de admirar e de (se) colocar metas sempre mais altas, aprimorando-se na busca! E jamais perder a esperança até o minuto final.

Ser Fluminense é gostar de talento, honradez, equilíbrio, limpeza, poesia, trabalho, paz, construção, justiça, criatividade, coragem serena e serenidade decidida.

Ser Fluminense é rejeitar abuso, humilhação, manha, soslaio, sorrateiros, desleais, temerosos, pretensão, soberba, tocaia, solércia, arrogância, suborno ou hipocrisia. É pelejar, tentar, ousar, crescer, descobrir-se, viver, saber, vislumbrar, ter curiosidade e construir.

Ser Fluminense é unir caráter com decisão, sentimento com ação, razão com justiça, vontade com sonho, percepção com fé, agudeza com profundidade, alegria com ser, fazer com construir, esperar com obter. É ter os olhos limpos, sem despeito, e claro como a esperança.

Ser Fluminense, enfim, é descobrir o melhor de cada um, para reparti-lo com os demais e saber a cada dia, amanhecer melhor, feliz pelo milagre da vida como prodígio de compreensão e trabalho, para construir o mundo de todos e de cada um, mundo no qual tremulará a bandeira tricolor.

Não me refiro ao olhar apaixonado.
Falo de algo além.

Falo do olhar que paralisa no outro
e não se pode desligar.

Que se apavora de adivinhar-se
possivelmente feliz e se descobre em profundidade
e espanto no poço do outro, no fundo do qual
mora uma certeza nunca antes confirmada.

O amor maduro...
É feito de compreenção, música e mistério.
É a forma sublime de ser adulto
e a forma adulta de ser sublime e criança.
É sol de outono: nítido mas doce.
Luminoso sem ofuscar.
Suave mas definido. Discreto mas certo.
Um sol, que aquece até queimar.

Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão.

As pessoas amam bem mais a expectativa do amor possível que o amor propriamente dito. Daí a intensidade dos impulsos bloqueados, os que estão impedidos de expansão e movimento na direção do objeto amado. Os "grandes amores" da literatura são grandes, não por serem amores, mas por serem impossíveis.
Já os grandes amores da vida real só quem sente é que sabe. A impossibilidade de dimensionar um impulso afetivo carrega de energia a fantasia. E esta se encarrega de dar dimensão ao que o exercício da relação, talvez, tirasse. Na paixão impossível só estão as projeções do que idealizamos, pretendemos ou não conseguimos viver em nosso cotidiano. Daí ser fácil entender sua força, sua obsessiva presença na cabeça dos enamorados.
É por isso, aliás, que só é musa quem é inatingível. Case-se com a sua musa e acordará com uma jararaca... Case-se com quem ama e será feliz. Quer se ver livre de uma paixão colossal? Vá viver com a pessoa objeto da paixão (observem, por favor, que não estou usando a palavra amor). Aliás, já está nos clássicos e, mesmo, antes destes, nos antigos: "A conquista enobrece e a posse avilta". Ou, como dizia Goethe: "Nas batalhas da paixão, ganha aquele que foge".
Quantas vezes as relações humanas terminam ou se interrompem sem terem esgotado o potencial de possibilidades adivinhadas, intuídas, sentidas. Aí, o que não se esgotou clama por vir à tona e, muitas vezes, ameaça ocupar (e às vezes ocupa, efetivamente) todo o "ego".
Não é por outra razão que o apaixonado é o maior dos egoístas. Ao dedicar tudo ao objeto da paixão, está é alimentando a própria necessidade, seja de sofrimento, de idealização, de felicidade ou fantasia. Entupido de impossibilidades, ele clama. E a isso muitos chamam amor. Mas amor é coisa muito diversa... Amor não clama nem reclama: amor dá.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido.

Artur da Távola

Nota: Trecho de um texto do autor.

VOCÊ SABE OUVIR?

Vendo de casa a quantidade de perguntas repetidas aos convocados para depor na CPMI dos Correios e mesmo algumas respostas destes, lembrei-me de uma velha convicção do que observei e fui aperfeiçoando em anos de debates, comissões e reuniões. Raras, raríssimas, são as pessoas que procuram ouvir exatamente o que a outra está a dizer. Vejamos:

1) Em geral não se ouve o que o outro fala: ouve-se o que ele não está a dizer.

2) Não se ouve o que o outro fala: ouve-se o que se quer ouvir.

3) Não se ouve exatamente o que o outro fala. Ouve-se o que já se incorporara antes a respeito do assunto falado que bloqueia a compreensão da fala alheia e faz ouvir o que já se achava ou discordava a respeito.

4) Raramente se ouve o que o outro fala. Ouve-se o que se imagina que ele iria falar.

5) Numa discussão, em geral, não se ouve o que o outro fala. Ouve-se quase que só o que se pensa para dizer em seguida.

6) Outros não conseguem ouvir o que o outro fala. Ouvem o que gostariam que o outro dissesse.

7) Não se ouve com disponibilidade interior o que o outro fala. Ouve-se apenas o que se está sentindo em relação ao assunto debatido.

8) Não se ouve o que o outro fala. Ouve-se o que já se pensava a respeito daquilo que o outro está a falar,

9) Não se ouve plenamente o que o outro fala. Retiram-se da fala dele apenas as partes que já estavam sedimentadas dentro de si mesmo.

10) Não se ouve o que o outro fala. Ouve-se o que confirme ou rejeite o seu próprio pensamento ou opinião pré-existente. Ou seja, transforma-se o que o outro está a falar objeto de concordância ou discordância.

11) Não se ouve o que o outro está a dizer Ouve-se o que possa se adaptar ao impulso de amor, raiva ou ódio que já sentia por quem está a falar.

12) Não se ouve o que o outro fala. Ouve-se da fala dele apenas os pontos que possam fazer sentido para as idéias e pontos de vista que no momento nos estejam influenciando ou tocando mais diretamente.

Ouviu?

Artur da Távola

Nota: Texto original do autor, que surge muitas vezes adulterado e com outros títulos: "Arte da Comunicação"; "O Difícil Facilitário do Verbo Ouvir"; "A difícil Arte de Ouvir".

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O VELHO TEMA DO EU E DO OUTRO

Veja se dá para entender: a gente, para a gente mesmo, é a gente. Raramente consegue ser o outro. A gente, para o outro, não é a gente, é o outro. Deve estar confuso. Tento de novo. Cada um de nós vive uma ambiguidade fundamental: ser a gente e ao mesmo tempo, ser o outro. Pra gente, a gente é a gente. Para o outro, a gente é o outro.

Temos, portanto, dois estados: ser o eu de cada um de nós e ser o outro. Na vida de relação, pois temos que saber ser o ‘eu individual’ e ao mesmo tempo, aceitar funcionar em estado de alteridade (outro vem de ‘alter’), ou seja, de ‘outro’.

O outro, raramente nos considera como a gente (como pessoa singular, peculiar, própria, única, desigual). Em geral, ele nos considera como o ‘outro’. Daí surgem os conflitos. Não apenas o outro em geral não nos considera como ‘a gente’. Também a gente não sabe aceitar, ou raramente aceita, ser tratado como ‘outro’. A gente quer ser tratado como a gente sabe que é, e não como o outro nos considera.

A gente sempre tem esperança que o outro descubra o que a gente é. Mas isso é muito difícil, porque o outro nos vê como ‘outro’ ou como qualquer projeção dele, jamais nos vê como a gente se vê ou quer ser visto ou gostaria de ser visto.

Uma relação de duas pessoas dá-se portanto, em quatro etapas: i) para Joaquim, Maria é o outro; ii) para Joaquim, Joaquim é Joaquim; iii) para Maria, Joaquim é o outro; iv) para Maria, Maria é Maria.

Mas Maria quer que Joaquim não a veja como ‘o outro’ e sim como Maria. E Joaquim não quer ser visto como ‘o outro’, ele quer ser visto como Joaquim. Mas nem Maria o vê como Joaquim (e sim como ‘o outro’), nem Joaquim a vê como Maria (e sim como ‘o outro’ na pessoa dela).

É essa a vontade de que nos vejam como individualidade que somos, o que nos leva a exigir talvez demais daqueles que se relacionam conosco. Eles talvez não estejam preparados (raramente estão) para nos ver como ‘eus’, como unidades próprias, como somos ou como queremos ser.

Exigir dos demais que nos vejam em nossa individualidade é um fato de pouca sabedoria. Raramente eles o conseguem, porque se somos ‘eu’ para nós mesmos, somos outro para eles. Em estado de ‘eudade’ (de eu), somos uma pessoa. Em estado de alteridade, somos outra pessoa.

Conseguir, sem exigir ou cobrar, porém, que o outro não nos veja como ‘o outro’ que somos para ele, mas como o ‘eu’ que somos para a gente, é ato de sabedoria. Significa saber ser nítido, saber colocar-se como pessoa e como individualidade, saber ocupar o próprio espaço sem qualquer invasão do espaço dos demais ou sem qualquer limitação do que eles são e nos agregamos, por inveja ou por admiração (coisas muito parecidas).

Para tal, é mister que saibamos ver o outro não apenas como o ‘outro’, mas como o ‘eu dele’ para ele. Mais claro: significa ver o outro como ele é, na condição de ‘eu’ ou seja, de indivíduo próprio, peculiar, semelhante sim, mas desigual e não na condição de ‘outro’, que é como ele chega até nós.

É no centro dessa relação que está a essência do problema da comunicação e da comunhão (que vem a ser a mesma coisa).

Eu devo ser ‘eu’ para mim e para o outro. O outro deve ser o ‘eu-dele’ para mim. Eu devo aceitar ser ‘o outro’ para o outro. Mas devo desejar e conseguir ser ‘eu’ para ele. Eu, em estado de ‘eu’, devo aceitá-lo como outro. Eu, em estado de ‘outro’, devo aceitá-lo como o eu dele. Eu e ele somos ao mesmo tempo ‘eu’. Eu e ele somos ao mesmo tempo ‘ele’. Ele é ‘eu’ mas também é ele. Por isso somos, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. Por isso somos irmãos. Por isso a humanidade é uma só. Por isso a igualdade humana é uma verdade, na diferença individual.

E, para terminar, um outro alcance, paralelo ao principal, mas verdadeiro nas relações humanas: o outro nunca sabe direito o que ele é e representa para a gente. E a vida nos vai ensinando a ser cada vez mais sozinhos, pelo acúmulo de não correspondência daqueles que sempre nos significam algo, mas nunca o souberam ou perceberam na exata medida. Ou então, preocupados em excesso com os próprios problemas nunca atenderam ao potencial de afeto que por eles ou para eles havia em nós e foi desgastando em uso ou dispersão, já que não o souberam receber.

Às vezes esse ‘outro’ é mesmo o outro. Aí é a gente que fica com o próprio gesto de amor solto no ar à espera de aceitação, entendimento e correspondência. Em ambos os casos, dói. Mas isso já é outra crônica.

‎O ser humano só valoriza o amor quando há perda ou risco de perda... Quase nunca durante sua encantatória vigência. Descobrir que amar é também saber amar e transformar a vigência do amor em vivência de amor, em algo bom, pelo gosto de viver e não pelo medo de perder, é sabedoria para poucos [...]. Amar é fazer um pacto de felicidade e não de dor. Quem porém sabe disso?

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. E o mais independente. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido. Afinidade é não haver tempo mediando a vida. É uma vitória do adivinhado sobre o real. Do subjetivo para o objetivo. Do permanente sobre o passageiro. Do básico sobre o superficial. Ter afinidade é muito raro. Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.

Artur da Távola

Nota: Trecho de um texto do autor.

Amor e Ódio

Tema antigo. Ainda e sempre, ódio e amor, andam juntos através da facilidade através da qual o amor que não encontra resposta apodrece e vira veneno. O que salva e o que eleva é constituído da mesma matéria que fermenta, apodrece e mata.

Qual será a química explicativa da transformação súbita do que era busca, procura, sentimento de proteção e dedicação em imediata deterioração e ódio?

A química da transformação do afeto em raiva e da raiva em ação destrutiva, ainda não foi medida por nenhum laboratório da ciência. Apenas pela literatura e pela dramaturgia. Ou pelo jornalismo diariamente a espelhar os casos de amor terminados com a destruição de uma das partes.

A psicanálise também examina a questão. E com profundidade. Para ela, o mecanismo de auto destruição ou de destruição do próximo, já estava presente quando as pessoas resolveram se gostar. O mecanismo destrutivo está, já presente, quando as pessoas fazem o que supõem ser uma escolha livre. Não é escolha, diz a psicanálise: é o atendimento de uma pulsão inconsciente que faz adivinhar no parceiro as condições para o exercício dos impulsos mais fundos de destruição: ou a própria ou a do outro. Assim diz a psicanálise. Mas a questão continua de pé.

Se era amor, se era tanto, por que, diante da frustração ou da recusa de reciprocidade ele tem que virar ódio?

Se é amor não pode nunca ser ódio, proclamarão em coro os humanistas e os cristãos. Não era amor!

Quem ama e é rejeitado tem o impulso de ódio e de destruição. É esse impulso (que às vezes pode durar apenas um segundo) que essas histórias populares percebem e ampliam, traduzindo-o numa ação demorada, complexa, planejada, urdida. O público adere porque aí encontra a forma mais simples de ver-se ainda que através do outro; como na dramaturgia e na literatura.

Quem for capaz de conhecer o próprio impulso de ódio poderá talvez aplacá-lo, ou diminuir o seu efeito destrutivo.

Quem for capaz de controlar o próprio impulso de ódio talvez até aproveite a energia que está dentro dele (como nas forças da natureza) canalizando-a para obras e ações criadoras e positivas.

Quem for capaz de dirigir o próprio impulso de ódio, talvez despeje a força dele numa atividade artística ou empresarial, desviando-a do objeto amado passível de ser destruído.

Tudo bem. Magnífico que assim se faça, conforme o caso e conforme a pessoa! Terapêuticas e religiões (no fundo parecidas) aí estão a mostrar o sentido ético da vida e a importância de transformar a falibilidade e fraqueza humanas em objeto de meditação e de aprimoramento.

Encontros e desencontros do amor

Cada encontro está carregado de perda. Ou de perdas. Às vezes duas pessoas que se amam (amigos, casados, solteiros, amantes, namorados) se encontram e são felizes. Ao fim da felicidade, um deles chora. Ou fica triste. Ou baixa os olhos. Ou é invadido por uma inexplicável melancolia. É a perda que está escondida no deslumbramento de cada encontro.

O encontro humano é tão raro que, mesmo quando ocorre, vem carregado de todas as experiências de desencontros anteriores. Quando você está perto de alguém e não consegue expressar tudo o que está claro e simples na sua cabeça, você está tendo um desencontro. Aquela pessoa que lhe dá um extremo cansaço de explicar as coisas é alguém com quem você se desencontra. Aquela a quem você admira tanto, que lhe impede de falar, também é um agente de desencontro, por mais encontros que você tenha com as causas da sua admiração por ele.

A pessoa que só pensa naquilo em que vai falar e não naquilo que você está dizendo para ela é alguém com quem você se desencontra. Alguém que o ama ou o detesta, sem nunca ter sofrido a seu lado, é alguém desencontrado de você. Cada desencontro é perda porque é a irrealização do que teria sido uma possibilidade de afeto. É a experiência de desencontros que ensina o valor dos raros encontros que a vida permite. A própria vida é uma espécie de ante-sala do grande encontro (com o todo? O nada?).

Por isso, talvez ele nada mais seja do que uma provocação de desencontros preparatórios da penetração na essência do ser. Mas, por isso ou por aquilo, cada encontro está carregado de perda. E no ato de sentir-se feliz associa-se a ideia do passageiro que é tudo, do amanhã cheio de interrogações, da exceção que aquilo significa. A partir daí, uma tristeza muito particular se instala.

A tristeza feliz. Tristeza feliz é a que só surge depois dos encontros verdadeiros, tão raros. Encontros verdadeiros são os que se realizam de ser para ser e não de inteligência para inteligência ou de interesse para interesse. Os encontros verdadeiros prescindem de palavras, eles realizam em cada pessoa, a parte delas que se sublimou, ficou pura, melhor, louca, mas a parte que responde a carências e às certezas anteriores aos fatos.

É mais fácil, para quem tem um encontro verdadeiro, acabar triste pela certeza da fluidez da felicidade vivida do que sair cantando a alegria da felicidade vivida ou trocada. Quem se alegra demais se distancia da felicidade. Felicidade está mais próxima da paz que da alegria, do silêncio do que da festa. Felicidade está perto da tristeza, porque a certeza da perda se instala a cada vez que estamos felizes.

É esta certeza - a da perda - que provoca aquela lágrima ou aquela angústia que se instala após os verdadeiros encontros. Há sempre uma despedida em cada alegria. Há sempre um "e depois?" após cada felicidade. Há sempre uma saudade na hora de cada encontro. Antecipada. Disso só se salva quem se cura, ou seja, quem deixa de estar feliz para ser feliz, quem passa do estar para o ser.

SABES RECEBER O AMOR?

Do ponto de vista de quem recebe, o amor ganha contornos bem diferentes daqueles existentes do ponto de vista de quem dá. E é tão raro o empate entre dar e receber! Há pessoas absolutamente incapazes de receber o amor. Outras há que filtram o amor recebido segundo a sua maneira de ser, reduzindo (ou ampliando) o afeto ganho através de suas lentes (existenciais) de aumento ou diminuição. Quem pode dizer com segurança que sabe avaliar o amor recebido? Outras há, ainda, que só conseguem amar quando recebem amor, não admitindo dar sem receber. Há, também, o tipo de pessoa que não dará (amor) jamais, pois só sabe receber. E existe aquela outra que quer e precisa receber, porém não sabe o que fazer quando (e quanto) recebe e transforma-se, então, numa carência viva a andar por aí, em todos despertando (por insuspeitadas habilidades) o desejo de algo lhe dar.

Receber o amor é como saber gastar (gostar?). Já reparou que há pessoas que não sabem gastar? Muitas sabem ganhar muito dinheiro, mas depois não o sabem gastar. Receber o amor é como saber gastar (gastar o amor de quem lhe está dando). É necessário fazer com que o investimento recebido renda frutos, juros e dividendos em que o recebe, para novos investimentos e lucros humanos. Há quem o saiba fazer (ou seja, saiba receber). Há quem não o saiba e gaste o (amor) recebido de uma só vez, sem qualquer noção do quanto custou para quem o deu.

O problema de receber o amor é fundamental, porque ele determina o prosseguimento ou não da doação.

O núcleo do problema está na forma pela qual cada pessoa recebe o amor, modelando-o.

De que valerá um amor maior do que o mundo, se a forma pela qual se o recebe é diminuta? Um amor de pequena estatura doado a alguém pode ser recebido como a dádiva suprema. Será (soará), então, enorme!

Daí que amor está também, além de dar, em saber receber. Saber receber, embora pareça passivo, é ativo. Receber, se possível avaliando a intensidade com que é dado e, se for mais possível, ainda, retribuir na exata medida. Saber receber é tão amar quanto doar um amor.

Se todos soubessem receber, não haveria a graça infinita dos desencontros do amor, geradores dos encontros.

Receber o amor é tão difícil quanto amar! É que amar desobriga e receber o amor parece que prende as pessoas, tutela-as e aprisiona-as quando deveria ser exatamente o contrário, pois saber receber é tão grandioso e difícil quanto saber dar.

Grande parte (talvez a maioria) das pessoas procuram-se por causa de diferenças complementares (que existem, e como!) que depois crescerão até distanciá-las. Há uma percepção antecipada do que é falta, carência e insegurança nos nossos núcleos internos. Procura-se, então, quem tem ou parece ter o que nos falta. No começo é ótimo. Depois... babau, embora haja relações que se baseiam a vida inteira nessas diferenças que se complementam.

A união entre duas pessoas - quando não é amor, mas nele se camufla - é a complementação de necessidades que, num dado momento da vida de cada um, parecem essenciais para a solução de suas dores, mágoas ou carências. Amor é deveras confundido com "necessidades complementares".

O progresso interior ou amadurecimento de apenas um dos membros do par amoroso, torna ainda mais instável a relação porque dela retira o caráter complementar que a mantinha. Dois espelhos, um defronte do outro, geram imagem infinita. Um só espelho reflete apenas a imagem de quem se olha. Olhar e ver o outro aplaca. Olhar e apenas ver-se é, para muitos, insuportável.

Quando a evolução de uma das pontas do par amoroso dá-se de maneira
mais rápida que a da outra, esta não tem mais em quem projetar as suas ansiedades. Uma parte já não aceita as cargas da outra, antes assimiladas por imaturidade, medo ou dependência econômica. Aí o equilíbrio do par se abala. Ou rompe.

Por evolução não se entenda apenas a intelectual. Esta é importante,
porém não decisiva. Numa pessoa, há vários núcleos internos que
podem ganhar graus ou ritmos evolutivos diversos: emocional, sexual,
profissional, espiritual, físico, econômico, político.

Somos seres variados, plurais. Nossa arquitetura interior possui
elementos de vários estilos e escolas. Englobamos e amealhamos,
tendências díspares, propostas diferentes em nossos vários núcleos interiores. Assim, em nossa relação mais profunda, que é
a íntima, cada núcleo interior seja, intelectual, emocional, sexual, profissional, espiritual, econômico e político pode vir
a ter ritmos diversos de evolução.

Somos seres tão estranhos, que podemos passar por evoluções
intelectuais formidáveis e permanecer anos a fio estacionados ou
cristalizados em outro núcleo emocional. Podemos evoluir emocional,
profissional e politicamente e permanecer estacionados sexualmente, e
repetir antigas, estacionárias ou primárias formas de exercício do
instinto sexual. E assim por diante. É muito difícil evoluir por igual
em todos os nossos núcleos interiores. Por isso desandam tantos casos
de amor depois que se resolvem com a união das pessoas.