Adélia Prado

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Enredo para um tema

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

O que a memória ama fica eterno.

Adélia Prado
Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015.

Nota: Trecho do poema Para o Zé.

...Mais

⁠Páscoa

Velhice
é um modo de sentir frio que me assalta
e uma certa acidez.
O modo de um cachorro enrodilhar-se
quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.
Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos,
a segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, pra chorar.
Eu, que fui loura e lírica,
não estou pictural.
Peço a Deus,
em socorro da minha fraqueza,
abrevie esses dias e me conceda um rosto
de velha mãe cansada, de avó boa,
não me importo. Aspiro mesmo
com impaciência e dor.
Porque sempre há quem diga
no meio da minha alegria:
‘põe o agasalho’
‘tens coragem?’
‘por que não vais de óculos?’
Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,
quero o que desse modo é doce,
o que de mim diga: assim é.
Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,
ganhar uma poesia em pergaminho.

Adélia Prado
Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015.
Inserida por pensador

O que pode ser dito

⁠Quase indizível o experimento histórico,
porque o mês é setembro,
o ano, o de 2011
e às três da manhã me percebo acordada
me equilibrando à beira de um buraco
de que só agora meço o fundo e escuto
a radiação contínua de uma dor
por anos de distração ignorada.
Quem pode me consolar
a não ser Vós, face desfigurada de solidão e tormento?
Que fiz eu, desatenta a vida inteira?
Com que ocupava as horas
quando, à minha frente, muda
levantáveis os olhos para mim
esperando mais que migalhas?
Chorem comigo, céus,
para que o desvão transborde.
Me socorre, pai, mãe, me socorre,
irmãos meus, ancestrais, pecadores todos.
Quem viu o que vejo
venha me socorrer.
Sempre quis ver Jesus
e Ele esteve comigo o tempo todo.
Só era preciso um olhar,
um olhar atento meu.
Era só ficar junto e de modo perfeito
tudo estaria bem, de modo miraculoso.
Ó Vós que me fizestes,
bendigo-Vos pela cruz
da qual ainda viva me desprendes.
Eu não preciso mais acreditar.
Na minha carne eu sei que sois o amor
e é dele que renasço
e posso voltar a dormir.

Adélia Prado
Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015.
Inserida por cainanbao

⁠O sempre amor

Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele podem entalhar-me,
sou de pedra-sabão.
Alegre ou triste,
amor é coisa que mais quero.

Adélia Prado
Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015.

⁠Trem noturno

O trem viaja sob estrelas.
Tal qual um doutor,
o pai veste guarda-pó.
‘Fagulhas entram com o vento, minha filha,
e roupa boa é uma só.’
Fagulhas e o cheiro da lenha na fornalha,
da graxa em suas unhas
como um sinal de nascença.
‘Presta atenção, minha filha,
com o trem andando.
Uma vez, uma menina espichou o braço na janela
e adeus, braço.’
O trem passou. Só ficou o que não morre:
esta memória forjada em pó de carvão e lágrimas.
Graças a Deus, não preciso dizer:
adeus, pai.

Adélia Prado
O jardim das oliveiras. Rio de Janeiro: Record, 2025.
Inserida por pensador

⁠Filme B

Colarinho sujo e gravata,
cabelo pintado e caspas.
O close capta a canastrice do crápula.
Tem uma traça no traje que ele veste
fazendo papel de rico.
Balança o lustre de lata
no teto de papelão.
Atores, rosas expropriadas de sua alma,
meu límpido espelho.

Adélia Prado
O jardim das oliveiras. Rio de Janeiro: Record, 2025.
Inserida por pensador

⁠Herança

Deus dirá para mim, quando eu morrer:
Toma, filha, a escritura deste lote de pedras,
a eternidade é tua
pra cheirar capim seco à margem da ferrovia,
ver teu pai dando guerra às saúvas
e escutar tua mãe cantando.

Adélia Prado
O jardim das oliveiras. Rio de Janeiro: Record, 2025.
Inserida por pensador

⁠Categorias

Não nasci assim mãe,
assim avó,
assim tia.
Já fui filhinha,
irmã,
fui coleguinha.
Única e singular,
já fui louçã.
Agora,
mal começa a manhã,
entra noite, sai dia,
sou só dona Maria.

Adélia Prado
O jardim das oliveiras. Rio de Janeiro: Record, 2025.
Inserida por pensador

⁠A bela múmia

Comeu, dormiu, caçou,
adorou vários deuses
e hoje, insepulta,
ri para os turistas.
Nem tão frágeis são os ossos.
Passaram-se milênios
e quem vê quem?
Você tão antiga, acordada,
eu tão moderna,
ainda não fui dormir.
O fio do colar está perfeito.
Em gravuras antigas
aprendo como se adora o deus.
Braços erguidos, as conchas das mãos
voltadas para o alto.
Aplacam-se os neurônios,
fica tudo perfeito novamente:
a batalha contra os ratos,
a angústia de pensamentos
que perturbam o sono,
o que "excede todo entendimento"
e este amarelo radioso
sugerindo que maio está voltando.
Muito cuidado com o recém-nascido.

Adélia Prado
O jardim das oliveiras. Rio de Janeiro: Record, 2025.
Inserida por pensador