Adélia Prado
Faça-se a dura vontade do que habita meu peito: Vem, Jonathan, traz flores pra minha mãe e um par de algemas pra mim.
.Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.
Tudo manha, truque, engenho: é descuidar, o amor te pega, te come, te molha todo. Mas água o amor não é.
Eu ponho o amor no pilão com cinza e grão de roxo e soco. Macero ele, faço dele cataplasma e ponho sobre a ferida.
Estremecerei de susto até dormir. E no entanto é tudo tão pequeno. Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.
Amor pra mim é ser capaz de permitir que aquele que eu amo exista como tal, como ele mesmo. Isso é o mais pleno amor. Dar a liberdade dele existir ao meu lado do jeito que ele é.
Era raiva não. Era marca de dor.
Fui dormir umas vezes tão feliz, que, se
soubesse minha força, levitava.
Em outras, tanta foi a tristeza que fiz versos
Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.
Desejo a máquina do tempo
para que não haja o havido
e eu recomece misericordiosamente.
Do livro "Os Componentes da banda"
Então eu virei pra ela e falei assim: ah, nada, boba, também é assim, se der, bem, se não der, amém, toca pra frente.
Dor não tem nada a ver com amargura.
Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais.
É pra ensinar a gente a viver.
O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes,
os caixões de janela se desprendem.
O que precisa nascer
aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.
Lembrança de maio
Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
A santa sobre os abismos-
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.