Saber Cuidar - Leonardo Boff
”Aprendemos, com o tempo, que não é preciso iluminar tudo. Que nem toda verdade precisa ser dita sob refletores. Que há beleza em sussurros. E que a alma, para crescer, precisa germinar longe da pressa e da exposição.”
I. O fio invisível entre a razão e o abismo
Há um fio quase imperceptível que separa a sanidade da loucura. Ele não é feito de lógica nem de evidência. É tecido em silêncio, por forças que a consciência não domina e o juízo não decifra. Às vezes firme, às vezes tênue como névoa, esse fio nos atravessa. E todos nós, em algum momento, já o sentimos estremecer.
A sanidade é frequentemente confundida com controle, previsibilidade, coerência. Mas há loucuras que são apenas formas radicais de sentir. Sentir demais. Sentir o que o mundo não suporta nomear. Sentir o que escapa às categorias da razão domesticada. E há insanidades que nascem não do caos, mas do excesso de lucidez, quando a realidade se mostra em sua nudez crua e insuportável.
Nem toda loucura é ruína. Algumas são defesa. Outras, travessia. Há quem precise se despedaçar para sobreviver à rigidez do que é dito normal. E há quem se esconda atrás da sanidade como quem se fecha numa prisão segura, mas estéril.
A lucidez não é ausência de delírio. É a capacidade de dialogar com ele sem se perder. De acolher o que se rompeu sem rejeitar o que ainda sustenta. De habitar a própria mente como um território sagrado, mesmo quando os mapas falham.
No fundo, talvez sejamos todos dançarinos à beira do abismo. E o que nos salva não é o equilíbrio perfeito, mas a graça com que aprendemos a cair e voltar.
II. A lógica da mente e o descompasso da alma
A mente ordena, analisa, nomeia. Mas a alma não obedece a essa geometria. Há dias em que o corpo se move com exatidão, e ainda assim algo dentro tropeça. Em que se cumpre a rotina, mas a essência vagueia por labirintos que ninguém vê. Loucura, talvez, não seja um erro da razão, mas um grito da alma diante da razão que ignora a dor.
Há um descompasso entre o que pensamos e o que suportamos. A sanidade, nesse contexto, é um acordo social: parecer funcional, mesmo quando a alma arde. Ser coerente, mesmo quando se sangra em silêncio. Mas há quem não suporte esse pacto. E rompe. Rompe com o discurso, com a lógica, com a aparência. E no romper, revela, com crudeza, que há algo errado não com o indivíduo, mas com o mundo que não acolhe as rupturas internas.
A verdadeira loucura talvez esteja em fingir equilíbrio quando tudo clama por reconstrução. E a sanidade, paradoxalmente, pode ser encontrada no delírio que denuncia. No delírio que, mesmo desconexo, aponta para o que foi negado, rejeitado, silenciado.
O que chamamos de loucura, muitas vezes, é apenas a linguagem de um sofrimento que não encontrou tradução. E o que exaltamos como sanidade, às vezes, é só o verniz de uma desistência quieta. O desafio é olhar sem julgar. Ouvir sem enquadrar. E lembrar que, entre a razão e o delírio, há uma dor que pede escuta, não diagnóstico.
III. Quando o grito se disfarça de silêncio
Há gritos que ninguém ouve porque se disfarçam de silêncio. E há silêncios tão densos que carregam em si o estrondo de mil tempestades internas. A mente, quando já não suporta traduzir a dor em linguagem, recua. Fecha as janelas. Apaga as luzes. Cria mundos paralelos onde, mesmo distorcida, a realidade se torna suportável.
Nem sempre a loucura é ruído. Muitas vezes, é ausência. Ausência de conexão, de resposta, de chão. É o exílio interior de quem ainda está presente no corpo, mas já não habita a lógica comum. E nesse exílio, o tempo não segue sua ordem. As palavras não obedecem significados. O real se dissolve em fragmentos que só fazem sentido para quem ali está.
A sanidade, do lado de fora, observa, mede, intervém. Mas nem sempre compreende. Porque compreender exige mais do que escuta técnica, exige atravessamento. E poucos suportam atravessar a dor do outro sem se perder de si mesmos.
Talvez a maior ponte entre a lucidez e a ruptura esteja na empatia profunda, que não tenta apagar o delírio, mas se ajoelha diante dele como quem respeita um altar de sobrevivência. Porque ali, naquilo que chamamos loucura, ainda pulsa a centelha de quem resiste, não por desordem, mas por excesso de verdade que o mundo não conseguiu conter.
IV. A lucidez que enlouquece
Nem toda loucura é fuga. Algumas são excesso de lucidez. Quando se vê demais, sente-se demais. Quando se compreende além do que é possível suportar, a mente busca rotas que a consciência não escolhe. Há dores que não cabem na razão, e há verdades tão nuas que dilaceram.
A lucidez, quando absoluta, é um risco. Porque ver tudo sem véus é também ver o absurdo, a finitude, o vão das promessas humanas. E nem sempre se está pronto para permanecer são dentro desse deserto.
A loucura, por sua vez, aparece como véu restaurador. Ela recobre o intolerável, inventa símbolos, reinventa a lógica. Cria sistemas próprios onde o indivíduo pode ainda ser deus, vítima, redentor, qualquer coisa que impeça o colapso. É nesse sentido que a loucura pode ser também criação, não destruição. A reconstrução de um universo interno, com regras próprias, para que o ser não se desintegre.
E no entanto, mesmo no delírio, há beleza. Porque onde há linguagem, ainda que dissonante, há desejo de expressão. Onde há construção, ainda que simbólica, há instinto de permanência. E onde há dor, há humanidade.
Compreender esse ponto é recusar a dicotomia. É não separar em rótulos estanques o que, na verdade, se entrelaça em ondas. Todos os que pensam profundamente já roçaram a margem da loucura. Todos os que criam com intensidade já sentiram a vertigem do descontrole. O equilíbrio é uma dança. E a lucidez verdadeira não exclui o delírio, apenas o traduz.
V. O retorno pelo labirinto
Toda ruptura traça um labirinto. E quem nele entra, nem sempre deseja fugir. Às vezes, é no se perder que o ser se reconhece. A sanidade, quando forçada como imposição, pode se tornar mais opressora que o próprio delírio. Já a loucura, quando acolhida como linguagem da alma ferida, torna-se caminho de reintegração, ainda que não linear.
Os que retornam do fundo sabem que não voltam iguais. Carregam nos olhos uma espécie de cansaço antigo, mas também uma quietude que só os que desceram até o próprio vazio conseguem sustentar. São os que aprenderam a caminhar sem mapa, a escutar sem forma, a esperar sem garantias.
Não há cura como promessa. Há encontros. Há tempo. Há escuta. O retorno não é para ser o que se era, mas para descobrir o que se pode ser, depois do caos, depois da noite, depois da queda. E isso, talvez, seja mais digno do que qualquer normalidade aparente.
A linha que separa loucura e sanidade não é reta. Ela pulsa, dança, atravessa o cotidiano com gestos que ora nos salvam, ora nos expõem. E não é preciso temê-la, mas respeitá-la. Porque quem um dia já esteve à margem, sabe o valor de cada gesto de acolhimento. Sabe que é possível viver à beira, sem cair. E que às vezes, o mais são entre todos, é aquele que aprendeu a conviver com suas sombras sem tentar apagá-las.
No fim, a verdadeira sanidade não é exata. É compassiva.
“Nem toda loucura é ruína. Algumas são defesa. Outras, travessia. Há quem precise se despedaçar para sobreviver à rigidez do que é dito normal. E há quem se esconda atrás da sanidade como quem se fecha numa prisão segura, mas estéril.”
“O casamento é o namoro aprimorado, onde a paixão cede lugar ao amor e as relações se sustentam na cumplicidade e na resiliência.”
“O casamento é o jardim cultivado após a primavera do namoro, onde a flor da paixão dá lugar à raiz profunda do amor que resiste às estações.”
”Não há vitória real na força bruta. Toda opressão tem prazo. Só é livre quem aceita o fim das coisas e, mesmo assim, vive com propósito.”
”A queda é destino de quem ergue impérios sobre grilhões. A liberdade, ao contrário, floresce na leveza de quem compreende o fim e ainda assim escolhe o amor.”
”Não é pela imposição que se conquista o essencial. Toda forma de dominação é efêmera. A verdadeira liberdade nasce da aceitação do tempo e da busca de sentido no transitório.”
“Não há sabedoria na intransigência. Não há conquistas duradouras por meio da força. Oprimir e escravizar apenas adiam a queda. Liberdade é compreender e aceitar a efemeridade das coisas e, ainda assim, persistir em busca de um sentido.”
”A angústia pode nascer da razão ou do afeto. Em ambos os casos, revela um desalinho interior. Reconhecer seus sinais e interpretá-los como uma bússola é o primeiro passo para reencontrar o centro perdido.”
”Pensar demais e sentir demais são caminhos distintos para a mesma angústia. O que muda é como lidamos com ela.”
“Entre o excesso de pensamento e o transbordar da emoção, a angústia se forma. Nem sempre nos fere, mas sempre nos inquieta. Saber lê-la é saber-se.”
“Um dia triste. Um dia para esquecer. Um dia para me lembrar de que despertei. Um dia em que percebo minhas perdas. Um dia em que não comemoro meus ganhos. Um dia de luto. Um dia sem glórias. Um dia de realidade. Um dia.”
“Hoje não é um dia de celebração, mas de consciência. Percebo o tempo em sua nudez, os ganhos silenciados, as perdas em evidência. Não por revolta, mas por lucidez. Há dias que apenas são. E por serem, nos confrontam.”
”É um dia. Apenas um dia. Mas nele moram silêncios, memórias e um luto sem nome. Não há velas, nem brindes, apenas o tempo sussurrando que algo se perdeu e eu me encontrei ali.”
O Vazio de Ivan em Mim
Não é que eu não queira crer.
Queria. Com a mesma força com que respiro, com a mesma urgência com que busco sentido quando o mundo me fere.
Mas há em mim — como havia em Ivan — um vazio que não se preenche com promessas, nem com orações que ignoram o grito dos que padecem.
Não nego Deus.
Mas me recuso a aceitar um paraíso onde o preço seja o choro inconsolável de uma criança torturada.
Se a matemática da salvação exige esse débito, então que me excluam da equação.
Devolvo o ingresso. Não me serve um céu comprado com sangue inocente.
Minha dor não é a do ateu. É a do exilado.
Não me falta fé — me falta reconciliação.
Entre o que vejo e o que dizem que há.
Entre a razão que me habita e o absurdo que me cerca.
Entre o amor que imagino ser divino e o horror que assola o mundo sem trégua.
Carrego a lucidez como lâmina.
Ela me corta todas as noites. Me acorda. Me sangra.
Mas prefiro essa dor do que o conforto mentiroso da inconsciência.
E, no entanto, por vezes, invejo os que crêem sem feridas.
Os que chamam de “mistério” o que eu ouso chamar de “injustiça”.
Os que abraçam um Deus com olhos fechados, enquanto eu — pobre de mim — insisto em fitá-lo de olhos abertos, sem saber se Ele me vê.
Talvez um dia eu compreenda.
Ou talvez minha travessia seja essa mesma: caminhar com o coração em ruínas e a mente em labaredas,
entre o silêncio de Deus e o clamor dos homens.
Mas sigo.
Não por esperança.
Nem por fé.
Sigo porque parar seria entregar-me à loucura.
E entre a insanidade e a ausência de sentido, escolho — por ora — a lucidez dolorosa de quem carrega o vazio como cruz e como bússola.
