Intacta; para ele. É tudo o que lembro,... Carolina Pires

Intacta; para ele.

É tudo o que lembro, estávamos com pressa, o momento era de pura diversão e o álcool retardou nossos reflexos, só queríamos ir para a outra festa. Música alta, ele, perfeito, no volante e eu no banco de carona. Paramos no sinal vermelho e começou a tocar o refrão da nossa música. Beijamos-nos, o último beijo e eu ainda posso sentir seus lábios nos meus. Em meio a braços e abraços escuto uma buzina, abro os olhos, farol alto, um caminhão. O sinal ainda estava vermelho, eu juro. A culpa não foi minha, não foi dele, somos inocentes.
Acordo como se tivesse passado apenas uma noite, deitada em uma cama de hospital, o barulho dos aparelhos médicos me irritava e ao mesmo tempo uma pessoa chorava e gritava:
- Ela acordou! -... Era minha mãe.
- O que houve?
- Você estava em coma por três meses e graças a Deus acordou.
- E o Felipe?
- Acho melhor você ver com seus próprios olhos...
... E fui. Corredores, macas, pessoas passando mal e eu tinha acabado de ganhar a vida, novamente. Branco, tudo branco, frio e um aroma de remédio no ar. Hospital, como eu odeio. De longe vi o quarto 154 e o meu amor a dormir. Ao entrar naquele recinto vi enfermeiros controlando os aparelhos e me pedindo pra manter silêncio. O desespero começou a afrontar-me e, desesperada perguntei como ele estava e se voltaria logo pra casa. Nada. Disseram-me que estava em estado vegetativo e não respondia a sinal algum. O caso era grave. Ainda me recordo do pranto. Eu queria vê-lo, senti-lo nem que por um ínfimo instante qualquer. E lá fiquei.
Felipe após voltar a falar, sabendo que nada mais traria sua vida de volta, ciente de que sobreviver artificialmente estaria prejudicando tanto a ele tanto a mim, pediu para que eu desligasse os aparelhos, acabasse com meu último fio de esperança e oportunidade de sentir seu cheiro. Pior decisão de minha vida e o “eu te amo” mais sincero. Desliguei.
Hoje, a saudade é grande, não resisti. Três anos depois, ainda me recordo bem, foi o dia em que, pela segunda vez, eu morri.