Chegaste trêmulo, fronte baixa,... Abraham Cezar
Chegaste trêmulo, fronte baixa,
carregando o riso gasto dos que imploram lugar.
Havia em ti um vazio tão ruidoso
que parecia mendigar palavras antes mesmo de falá-las.
Ofereci-te o que tinhas por hábito comprar:
presença.
Te dei portas, nomes, rostos,
e a cidade — ainda estranha para mim —
fui eu quem plantou aos teus pés.
Tu, que pagavas atenção como se fosse imposto,
ganhaste caminhos sem custo,
ganhaste gente,
ganhaste voz.
E cada ganho teu custou um pouco da minha.
Mas a criatura que ergui com cuidado
aprendeu rápido o truque da ingratidão.
Viraste o rosto, torceste o gesto,
inventaste razões onde só havia dívida.
Foste sombra que aprende a morder quem a carrega.
Foste cálculo frio atrás de sorriso emprestado.
Foste o erro que só se revela
quando a noite cai sem aviso e mostra o que sobrou de nós.
E o que sobrou?
Um rastro áspero, uma memória que fere sem metáfora,
um eco que me chama por um nome que já não reconheço.
Covarde, sim
porque escolheste atacar quem te deu chão.
Injusto, também
porque cuspiste no gesto que te fez caber no mundo.
Hoje, quando penso em ti, não penso em pessoa,
mas em fenômeno:
um colapso pequeno, íntimo,
capaz de ruir confiança com precisão cirúrgica.
Ainda assim, não te odeio.
Seria afeto demais.
Apenas te arquivo
no lugar das coisas que jamais devolvem o que tomam.
E fecho este capítulo sabendo:
não foste amor, nem amizade, nem queda.
Foste ilusão
e eu, a última testemunha do truque.
Poema: Não te odeio, seria afeto demais.
27 de julho de 2009
