Num diálogo poético e filosófico,... MAGNO RIBEIRO, Wittembergue

Num diálogo poético e filosófico, Lume e Névoa, duas vozes que coabitam o mesmo Ser, empreendem uma travessia íntima pelos territórios internos daquele a quem pertencem. Lume observa com reverência e ternura os movimentos profundos de quem carrega em si um fogo contido, uma centelha divina e indomada. Já Névoa, inquieta e interrogativa, questiona o peso de viver à margem, sem forma definida, oscilando entre luz e sombra.
Ambos revelam, em vozes distintas, a complexidade de um Ser que não se encaixa em molduras, mas vibra nas frestas; um ser feito de contrários que não se anulam, mas se reconhecem. Ao percorrerem memórias de dor, quedas, silêncio e reinvenção, os dois traçam o mapa não fixo de uma identidade em metamorfose constante, que prefere a travessia ao destino e a imperfeição como linha viva de evolução.
Mais pra o final, evocando o verso do cantante, Lume chega à conclusão de que "ano passado ele morreu, esse ano ele não morre mais", e ambos compreendem que, mesmo fraturado, o Ser ainda pulsa, ainda recomeça. E que habitar-se é, sobretudo, sustentar-se inacabado, como poesia moldada no silêncio.
O convite, agora, é para que quem se debruça sobre estas linhas aceite caminhar ao lado de Lume e Névoa. Talvez encontre, nas dobras dessa conversa, algo de si mesmo.
DO LADO DE DENTRO: CONVERSAS DE QUEM HABITA O MESMO SER
LUME
Vem, Névoa.
Olha comigo mais uma vez esse Ser que também somos.
Às vezes, o olhar dele não se volta para o mundo.
Retorna, sem aviso, ao território quieto que pulsa atrás dos olhos.
Não busca forma nem resposta. Apenas reconhece, sem intermediação, aquilo que, mesmo escondido, continua a pulsar.
Não é espelho, nem testemunha externa.
É ver-se por dentro.
Ver-se por si.
E ali se enxerga.
NÉVOA
Vejo, Lume.
Mas diga: como é difícil habitar alguém assim, que não cabe no centro, nem se acomoda ao meio?
É como se tudo nele vibrasse nas bordas.
Uma essência que escapa às formas, que se recusa à lógica, que desmonta a moldura.
E tu o chama de inteiro?
LUME
Chamo de pleno no que pulsa, mesmo que nunca concluso.
Carrega em silêncio o gesto de um deus,
não o Deus que é verbo, mas uma centelha que se ergue por dentro,
soberana, indomada, feita de presença.
Um fogo contido que arde sem se exibir, senhor de si,
que só se aquieta diante do Senhor do Tempo,
esse imensamente maior, que o reconhece e o desarma em reverência.
NÉVOA
Só a Ele?
LUME
Não apenas. Inclina-se também à presença de uma Diva sutil,
que não exige poder,
mas influencia o curso do íntimo
com a mesma delicadeza com que a brisa atravessa o que é denso.
E assim, ambos, o Deus e a Diva, habitam extremos distintos,
mas que despertam nele o mesmo gesto silencioso de reverência:
um pelo peso, o outro pelo toque.
NÉVOA
Então tu vês, Lume,
que mesmo com tamanha reverência interna,
ele permanece partido entre extremos?
Talvez, diriam os que escrevem o indizível,
que nele habite um deus, um louco, um santo,
um bem e um mal.
Como se o corpo fosse templo de contrários,
e o espírito soubesse dançar entre eles sem se despedaçar.
LUME
Sim! Não há espelho que reflita todas as suas imagens.
Nem todas as versões cabem na superfície refletida.
O que se vê é só a pele do mistério.
O que importa vive entre as camadas.
Há uma delicadeza que atravessa,
mas também uma aspereza que resiste.
Um bem que titubeia,
um mal que às vezes acena como abrigo.
E quando o erro se insinua ou se estabelece,
a consciência se ergue em resposta,
nem sempre como correção,
mas como voo aprendido na queda,
orientado pelas cicatrizes das que vieram antes.
NÉVOA
Então tu me dizes, Lume,
que ele vive nesse eterno vai e vem entre tropeço e despertar?
Um movimento que não se encerra?
Parece mais fuga que caminho...
LUME
Não é fuga, Névoa. É caminho.
Como quem preferiu ser, como disse o cantante,
essa metamorfose ambulante,
não por inconstância,
mas por saber que de falha em falha se esboça o caminho do ser melhor.
A falha, afinal, não chega a ser imperfeição.
É traço vital, linha viva do que ainda pulsa em construção.
Ali, os opostos não se anulam,
mas se reconhecem como costuras do mesmo tecido.
O santo e o louco não duelam.
Entre eles, há uma dança que não se move no corpo,
mas vibra no silêncio do gesto.
NÉVOA
Mesmo assim... será paz, Lume?
O juízo ali não silencia o instinto,
e a fé caminha ao lado da dúvida, tropeçando de leve.
É um desassossego sereno.
Paradoxo que não deseja paz,
mas profundidade, isso que vejo.
LUME
É isso. A alma desconhece a gravidade.
Cai com elegância.
Levanta-se com sombra.
Deixa, na ausência, o traço sereno de uma presença que não se desfaz.
NÉVOA
Mas repara, Lume: quando silencia...
é como se uma parte escutasse a outra.
Quando chega, o que está dentro se move para abrir espaço.
Quando parte, permanece como marca,
raiz deixada por si em si.
LUME
É! São movimentos internos, quase imperceptíveis ao mundo,
mas que, dentro dele, provocam marés inteiras.
Passou por tempestades que não deixam marcas na pele,
mas tatuaram o espírito com signos secretos.
Conheceu subterrâneos sem nome,
lugares escuros, úmidos, densos.
Caminhou em trevas que evita nomear.
E mesmo assim, fez-se caminho.
Na lama, achou argila,
não o fim, mas o começo do que ainda pode ser moldado.
No breu, acendeu o sopro.
Na dor, encontrou o antídoto escondido na própria ferida.
NÉVOA
Verdade. É como se carregasse mares que não espelham o céu,
mas que se agitam no subterrâneo dos ossos.
São marés densas de silêncios não ditos,
que só encontram repouso
quando tocam águas mais claras.
Um mar sereno que abriga
sem perguntar de onde vieram as ondas.
Uma escuta líquida, sem pressa.
Um abrigo raso, onde até a dor aprende a boiar.
LUME
Pois é! Naquele interior onde coabitam o bem e o abismo,
a verdade não chega como raio,
mas como brisa.
Não mente,
mas pinta com delicadeza o que, se nu,
machucaria o que toca.
E mesmo sem se entregar por inteiro,
acende o que basta.
NÉVOA
Sim, ocorre que nem a poesia, nem a filosofia podem responder tudo, Lume.
Não se sabe ao certo se ser assim
tão cheio de frestas, de marés fundas e silêncios antigos,
é mais graça ou mais peso.
Não se sabe se há esperança para um ser que não cabe no centro,
nem certeza de que, passadas seis décadas,
ainda haja tempo para ser mais do que se tem sido.
LUME
Eu sei. Houve perdas. Partes desfeitas.
Ao longo dos anos, e no último especialmente,
algo nele silenciou mais fundo.
Houve um cansaço que em algum momento pareceu irreversível.
Uma despedida muda de si para si.
Mas o que ficou em pé, mesmo sem firmeza,
ainda espera espera o instante em que a alma volte a respirar mais fortemente.
E, parafraseando o cantante, o que digo dele é que:
‘ano passado ele morreu,
esse ano ele não morre mais’.
NÉVOA
Sabe? Habitar-se para ele nunca foi concluir-se.
É sustentar o inacabado com leveza.
E ali, onde tudo se contradiz
ou enfim se reconhece,
algo se acende,
não em luz plena,
mas em fresta viva, discreta,
onde o dentro começa a respirar por entre margens.
É por essa fresta que a claridade atravessa.
LUME
Sim! E tudo o que foi vivido,
a dor, o delírio, o descompasso,
fez-se matéria de travessia.
E a travessia, moldada no silêncio,
virou poesia.
Poesia que se espalha pelas bordas,
como quem só revela o sagrado
a quem aprendeu a ver no escuro.
NÉVOA
Sabe o que penso, Lume?
Nele há limites que nem a força mais íntima ultrapassa.
Há mistérios que nem a alma mais desperta ousa dominar.
E há passos, os derradeiros de cada travessia,
que só Deus, o verdadeiro, conhece o momento exato de conduzir.
Até para mim, que duvido, isso basta.
LUME
E bastando, é paz.
Voltemos ao nosso silêncio.
Ele ainda tem muito a nos dizer