đ âA Menina do Teçado Quebradoâ... Ana Maximo
đ âA Menina do Teçado Quebradoâ
Havia uma menina que morava numa casa onde o silĂȘncio pesava mais do que os gritos.
Ela carregava um teçado velho e quebrado. NinguĂ©m via esse teçado â era invisĂvel. Mas ela sabia que estava sempre ali, pendurado no coração.
A menina tinha um irmĂŁo. Pequeno, de olhos bons.
E ela acreditava que tinha sido escolhida para ser sua guardiĂŁ.
NĂŁo como irmĂŁ â como mĂŁe.
Quando a casa rachou por dentro, e os adultos viraram sombras apressadas e barulhentas, ela virou chĂŁo para o irmĂŁo nĂŁo cair.
Ela virou calor quando faltava colo.
Ela virou muro quando vinha ameaça.
âž»
Um dia, num sonho antigo e real, uma cobra azul gigante apareceu.
Ela vinha rastejando com olhos que viam memĂłrias.
Trazia ovos enormes no ventre â pesados como verdades nĂŁo ditas.
A menina sentiu medo.
Mas nĂŁo correu.
Ela segurou o teçado â quebrado, sim, mas ainda seu â e avançou.
Com o irmĂŁo escondido atrĂĄs do corpo frĂĄgil, ela lutou.
A lĂąmina rachada feriu a cobra.
E da ferida nĂŁo saiu sangue.
Saiu ĂĄgua. Muita. Clara como lĂĄgrima contida.
A cobra chorou por ela.
Chorou o que ela nunca pĂŽde chorar.
Da boca da fera, saiu um lamento.
E no meio da ĂĄgua, veio a verdade:
âVocĂȘ nĂŁo foi feita para ser mĂŁe. VocĂȘ era sĂł uma menina.
E mesmo assim, vocĂȘ sobreviveu.â
âž»
Quando a cobra adormeceu, a menina ajoelhou.
E pela primeira vez, largou o teçado.
Olhou para o irmĂŁo e disse com os olhos:
âAgora vocĂȘ cresce. Agora vocĂȘ cuida de si.
E eu⊠agora, eu vou cuidar de mim.â
âž»
No sonho, a ågua lavou o chão, os pés, o passado.
A menina enfim pÎde ser criança.
E a mulher que ela se tornaria,
nasceu dali: nĂŁo da dor, mas da coragem de se libertar dela.
