⁠E LHE CANTEI ENTÃO ESTE ACALANTO:... Bruno Tolentino

⁠E LHE CANTEI ENTÃO ESTE ACALANTO: Dorme, Minotauro, Mouro da mais amarga Veneza, mudo amor na correnteza do balbucio, homem-touro tossindo no labirinto da névo... Frase de Bruno Tolentino.

⁠E LHE CANTEI ENTÃO ESTE ACALANTO:

Dorme, Minotauro, Mouro
da mais amarga Veneza,
mudo amor na correnteza
do balbucio, homem-touro

tossindo no labirinto
da névoa e da solidão,
cala o instinto e o indistinto
e dorme, descansa, irmão!

Não existes, não existo,
nada existe neste mundo
aquém ou além do fundo
da linguagem. É tudo um misto

de silêncio e de ruído
no coração de quem sofre
preso num malentendido
como um inseto num cofre.

Perdoa-te… Nada ganhas
com dar e redar teus nós
na teia da velha aranha
retendo e perdendo a voz

no pescoço que partiste:
a garganta bipartida
entre a elegia do triste
e o último sopro da vida

não te vai dizer mais nada.
Tudo o que pôde foi dito.
No silêncio, na calada
da noite, escuta o infinito

para além da grade, tua
e dos outros prisioneiros
entre a linguagem e a luta.
Os últimos e os primeiros

tampouco entenderam Aquele
que ia morrer e lhes disse
que este universo era Dele
e o resto tudo crendice.

Nem tudo é só desperdício.
Tudo e nada nesta vida
se confundem, fim e início,
chegada como partida

trocam-se em pura ruína
mas o verme engole a aranha,
believe it or not! A sina
que escolhestes não se ganha

sem um sacrifício imenso,
mas que vale mais que a cena
em que por causa de um lenço
Otelo mata Desdêmona

ou o velho rei Lear,
louco e só, só pelo e osso,
vê e não vê balançar
Cordélia pelo pescoço.

Se o amor não aprende a língua
do ser amado, esse amor
é um louco morrendo à míngua
do que seja, ou do que for…

Deixa-te embalar, amigo,
como eu me deixo cantar
este acalanto e te digo,
te juro que o verbo amar

só Deus conjuga contigo.