Prosa Experimental 'Engolido" (...)... Crislambrecht

Prosa Experimental

'Engolido"

(...)

Vaga a mente numa exaustão profunda e encontra o fim do que parece ser a tolerância, trama o plano de fundo fronteirando o inalcançável, segue o longo, estreito e profundo abismo estendido infinitamente sob o céu escarlate de poeira vermelha vagando com o vento seco levando consigo resquícios de esperança qual clama por seguir adiante e atravessar o desfiladeiro dos cânions abissais que cercam e emparedam-o aos cantos escuros das sombras geladas.
Teme os estrondos longínquos que vagam pela grande vala, das nuvens carregadas em algum lugar a despejar torrentes de águas a escavar e aprofundar valetas no solo que de tão seco não enxarca. Tempestades que ameaçam dar por fim um gole sedento e refrescante engolindo para o fundo dessa garganta todo irrelevante presente, presos, entalados, incapazes de se defenderem do tumultuoso reboliço gélido e embarrado da saliva secular que torna a jorrar dos céus para terra numa faxina destrutiva reiniciadoramente confortável.
O sol lá fora ferve e frita os que vagam num passeio infernal por entre as areias escaldantes e entorpecedoras, passos que levam o ser cada vez mais perto do fim de seus curtos tempos. Enquanto lá em cima desejam o fechar do tempo e o cair da chuva, aqui em baixo só se procura sentir novamente um confortável sopro de vento refrescante. Cansado de olhar para a silhueta das bordas do precipício, vaga procurando por algo caído, folhas, galhos, flores, sementes, qualquer coisa que alimente a esperança desconfiada da remota chance de sair dali, espera que esteja descendo rumo a um lago ou riacho, pelo menos o fim dessas paredes que o engolem mais a cada hora que passa, a cada passo que hora em hora ficam mais insensíveis à caminhada fatídica infindável do vale que engole a todos e digere até mesmo a sanidade.

Restos de carniça, abandonada, esquecida, refugada pelos livres urubus a voar tão alto que daqui parecem moscas no risco de céu que se vê. O derreter paciencioso da carcaça fedorenta vai sendo banqueteada calmamente por vermes lúgubres
habitantes isolados nesta garganta que a tudo abandona
deixa morrer
se findar
acabar
porque ela
final
não possui.
Desprovida de fim serpenteia a eterna víbora por entre o quente e desértico solo, rico em ausências e espaços, imensidões vazias que põe qualquer infeliz vivente à condenação de ser devorado mais pelo tempo que pelos vermes. Vastidão isolada de qualquer presença, tendo o uivar dos ventos no alto das entranhas como companhia, o aguardar paciente das aranhas em seus emaranhados nós tricotados com exímia destreza milenar, calmamente a espera de um inseto qualquer que por azar o destino lhe finda a vida neste fim de mundo enrolado numa teia tendo suas últimas lástimas ouvidas por um vagante tão azarado quanto ele que de tando andar no fundo do abismo já alucina e ouve lastimando a pequena criatura que alimenta o predador com suas energias, lembranças, sentimentos e sonhos nunca alcançados.

(...)


Esvai-se o tempo paralelo aos precipícios
seus passos ressoam pelas paredes e correm para longe
ouve-se nada

De olhos escancarados e pernas bambas
cai
fita o esvoaçar das areias no céu crepusculoso
esfria

A noite vem chegando aos poucos
sua anunciação provoca espanto
medo

A possibilidade cada vez mais real daquela garganta vir a tornar-se
a sua tumba
seu eterno descanso
repouso
sem lamúria
de um cadáver que aos poucos derrete
calmamente
sendo apreciado com elegância pelos vermes
de outrora
e sempre

A noite
sem os ventos
traz o ensurdecedor silêncio
que até conforta
O céu
super estrelado
surge na fenda
que se estende por cima dos olhos

Como se estivesse frente a frente com um rasgo na imensidão única do espaço, numa brecha para as estrelas, distantes luzes a vagarem violentamente pelo negro esplendor entre as galáxias emaranhadas nas teias do cosmo. Leve, separa-o do chão flutuando hipnotizado pelo infinito espaço celeste conduzindo seu espírito elevado para além do cânion , para além do vale, percebe-se afastando de si seu mundo deixado para traz, pronto para abandoná-lo à própria condenação. Vai para o eterno abismo escuro onde o mundo ainda está a cair, cercado por distantes pontos de luz flutuando no vazio.
Torna-se ausência...
some
Enquanto seu corpo o perde de vista mergulhando entre os astros, deixa de sentir, morre o tato, olfato e paladar. Como uma pedra qualquer, ignora sua dureza e passa a afundar na areia levando consigo a insensibilidade fria para o passeio petrificado de quem nunca sai do lugar. A partir de agora é vaga lembrança de si, aos muitos esquecida e mil vezes fragmentada em poeira de olvidamento.

(...)

O vendaval o desperta, caído, esgotado, já havia desistido de manter-se em vida. Caído aguardava esvaziar-lhe os pulmões e findar-lhe as batidas cardíacas gritando aos ouvidos; 'estais a viver', insuportável verdade que lhe implica a inspirar novamente o escasso ar empoeirado da vala, a garganta seca que lhe engolira já não se sabe quando e porque. Deitado observa o cair dos grãos de areia e alguns galhos velhos, as nuvens correm de um lado para outro sobre a poeira enlouquecida, cada vez menos se ouve o coração que a pouco ensurdecia-o pois trovões rolam das alturas como despencar de imensas pedras.
Dá um pulo e põe-se de pé quando muito próximo o chicotear de um raio lhe arranca a alma do corpo por um instante, acerta em cheio o solo que cospe para cima estilhaços e deixa um rasto de fumaça a vagar perdidamente pela ventania. Tentando esfregar os olhos cheios de areia para entender o que acontece ao seu redor, avista um javali apavorado fugindo em sua direção, foge do temido gole titânico da garganta abissal, uma onda de água barrenta carregando pedras, galhos e tudo o que houver na caminho; carcaças, aranhas, sonhos de um inseto, esperança de um vagante perdido.
Engolido é, o caldo lhe arrasta moendo sua sanidade rumo a longa digestão em algum lugar do bucho deste gigantesco demônio do serrado, tudo some, se finda, acaba. Liquidificando e varrendo suas entranhas num gargarejo infernal o monstruoso cânion solta murmúrios assustadores de enfurecimento ouvido pelas estendidas planícies. Aridez que ansiava à meses por algumas gotas tem agora o solo lavado e levado com as enxurradas seus pedaços de qualquer coisa que por aqui para sempre se perde.
Caem ao longe raios sobre o resistente mato seco que rapidamente se torna uma roça de altas labaredas erguidas contra as nuvens, labaredas que parecem alimentarem-se da chuva, enquanto o vento lhes dão força para seguir devorando o restante do que estiver sobre o solo estalando um pipocar diabólico e apocalíptico neste agora caótico recanto abandonado.

(...)


Escorrem violentamente as turvas águas barrentas
por dentre a garganta cada vez mais larga
avermelham as terras baixas e formam um gigantesco lago sujo
como sangue coagulado
pus
pedaços
hemorrágica manifestação barrenta de um fim de mundo.

Lá no meio daquilo tudo
secretado
expelido
abortado
de sua paranoica semi-existência
o vagante perdido
se encontra.