A Sophia de Mello Breyner Aquela... Célia Moura

A Sophia de Mello Breyner

Aquela madrugada que irrompeu em nós
*“dia inicial e primeiro”,
esses ventos anunciando germinação
aquela madrugada em que das cinzas renascemos
Sophia,
repousa-me na garganta em estilhaços.

Aquele hino que ao colo do meu Pai
há décadas ansiado
sorrindo cantarolei.
Aqueles belos cravos vermelhos
a transbordar sangue fervilhante
de mim
hoje são farpas rasgando-me as entranhas
toda a quimera que inventei.

Aquela madrugada algures já perdida
é como um denso nevoeiro
onde ouço o grito da fome
do meu Irmão
a sussurrar clemência pelo chão.

Passa por ele tanto capitalista
mas nenhum lhe estende a mão.

Cegueira instalada e brutal
desdém!

Pobreza mais miserável que a própria fome
é a condenação à mesma!
Tal qual uma manta de retalhos
velha e dolorida.
Fomos vendidos
hipotecaram nossas vestes
cobrindo-nos de maldição e vergonha.

Vertem lágrimas
os craveiros vermelhos que gritaram
no peito daquela madrugada
repousa tu aí sabedoria eleita,
teu leito de Liberdade.
Eu permaneço pela enseada
nas asas de uma gaivota
cantarolando como se ainda estivesse
ao colo do meu Pai.

(*Sophia de Mello Breyner)

© Célia Moura (2015)