Coleção pessoal de RosanaFleury

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⁠Deserto


Nos morros esculpidos pelos ventos, nas mais altas fendas do Jalapão, a Princesa existia.
Presa em um Castelo cheio de ecos onde esquadrinhava a sua solidão.
Jamais descia.
Escondia-se com receio dos bichos que uivavam, rastejavam e se metarfoseavam junto ao capim dourado.
Do alto avistava as caravanas que contornavam as dunas à procura de sombra abaixo do chapadão alaranjado de arenito.
Ouvia os murmúrios dos preparativos do pouso, admirava a pequenas fogueiras iluminando a jalapa em chão de estrelas rastejantes.
Ao dia a savana dourada era castigada pelo vento indomável que carregava grãos de areia em constante combate.
Tinha desejo de descer, pisar naquela areia alaranjada, correr naquele silencioso esmagando o capim que choraria em seus pés estalando lamentos e rugidos.
No Castelo havia somente uma entrada.
E seus contornos e arrabaldes transpunham em curvas e corredores sem saídas obscuros para confundir estrangeiros.
Vivia ali sem nenhuma lembrança do passado somente do presente. À noite o Príncipe chegava carregado de conquistas e presentes alucinantes e ela viajava bem longe em seus verbos.
Na madrugada ele roubava seus sonhos durante o sono. Retirava seus aromas, as cores, suas noites enluaradas e o frescor de seu corpo banhado na alucinação dos rios.
Passou a Princesa a sofrer de nostalgia, de inquietude dolorosa, num choro calado debatendo-se com a sua imaginação.
Não havia superfície em sua vida, tudo era fundo e inatingível. Lembrava-se só das fogueiras estalando no lanço do isolamento das noites.
Tinha, portanto, um Castelo sem sonhos, janelas semicerradas e portas herméticas.
Passou a ficar extremamente branca, enluarada na cor onde se via seu mapa angiológico, desenhado, pulsando em suas veias.
Sua voz passou a ficar vigorosa, com ares de sufoco e repetir desejos. Diziam que a sua formosura estava pregada nas paredes da jalapa e respondia ao chamado dos curiosos.
– Princesa, onde estás? E no eco ela respondia:
– Onde estás?
Quando a caravana passava, abria suas tendas, nas sombras das noites insones, sua lenda sobressaltava junto à lua cândida.
E na placenta do imaginar ela nascia como alma de ilusão de quem deseja habitar na fantasia.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠A roupa dos dias

A elegância sempre aparecia silenciosa.
Não disputava com as cores dos dias nem com o brilho dos céus em tempos de proclamo.
A elegância é muda.
Modificava de estação e nunca de alinho.
Misteriosa e sem explicação.
Discreta e sabiamente sensacional, a elegância tinha seu espaço sem brigas no mundo interrogado.
Ardilosa era a verdade desvestida.
Sem medos e sustos desfilava com finura.
Era mágica, emblemática, sem artifícios.
Acordava faminta e dormia com todas as dúvidas sangrando.
Não, nunca, jamais queria ser reconhecida e seu caminho de fuga era desaparecer.
A elegância induz sem duelos.
O artifício era ser semelhante e macia, como um idêntico caçador. A elegância não era loura nem trigueira, transpirava calada e nos encontramos.
Meu coração não acelerou, a pressão permaneceu inalterável, o estômago não borbolhetou anseios, inalterou e persistiu no mesmo lugar.
Fiquei a olhar se aproximar toda emudecida, sucumbindo ao total silêncio.
E todos os ares emudeceram, a elegância estampou serena, densa e indissolúvel.
Tinha os olhos pequenos, obliculares, maquiados de preto.
No mimetismo que a escondia ela desfilou manchada por segundos,
com cuidado entre as burcas do capim cerrado. Tive inveja do ser bicho.
Onça.
E o animalesco da covardia em mim passa a permanecer e desafiar
a benevolência, somente aspirando bom gosto.


Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠Substantivo imperfeito

O Diabo resolveu ser contemporâneo e fez uma plástica capilar em suas madeixas revoltas. Nada difícil para quem estava acostumado ao cheiro de enxofre. Inalar formol, domar cachos era fácil, somente para ficar plano e formoso.
Decidiu ir ao salão e modificar.
Horas, mais badaladas e promessas do “deus penteador” o irritavam. Para distrair... fez as unhas.
As suas “manicures vampiras”, famintas de “bifes” com o oráculo
edificado na “Romênia” o espetavam.
Paciência sempre foi qualidade infernal e se deitou com ela.
Após seco, o comentado cabelo deslumbrou ao espelho como “Narciso”.
Retificação espelhada em todas as direções, o espetáculo estava nas
ruas.
Era só esperar as considerações.
Cabelos mais escorregadios do que asas de anjos encharcadas. Dormir suspendido como morcego e não amassar o pelo era o único dever de casa.
Mas a vaidade era o pecado que o Diabo mais apreciava.
Exibir a sua tentação achatada e lisa comeria de cobiça os desavisados ao inferno.
A inveja faria sucesso junto aos discípulos mais crédulos. E o Diabo matou alguém por impaciência.
No dia do enterro, só para se exibir, apareceu seguro de seu penteado pensando no sucesso.
Somente o defunto o reconheceu tão falso.
E partiram do planeta, enterrados e irreconhecíveis por instantes naquele dia.
Com todos os diabos universais atrás tocando viola.


Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠ Fale

Se você não quer falar comigo
Não tem problema
Eu falo por você
Nesta hora sua mudez
Vira conto.
Verso,
Metáfora
Aí tenho as rédeas
Sou dono de suas palavras
Impero e domino seus movimentos
Eu olho para você
Você olha em mim
E em versos
Dialogamos
E nos amamos para sempre.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠ Não Sei

Eu não sei se o que você sente
É tão intenso
Como eu sinto
...mas...
Você não quis sentir comigo
O quanto sinto por você
Virtual
Antigo
Metafórico
Platônico
Muito econômico
Talvez
Até impossível
...e você diz:
...você é rica!
Respondo:
Minha maior riqueza
Nesta hora
E você
Deixe-me
Me diz:
Não
Não
Não
Você discorda
De brincadeira
Diz:
Sim
Sim
Sim
Sou tão simples
Que lhe mete medo
Há certos sentimentos
Que não têm preço
Mas tem
Um apreço enorme.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury


“A cidade dos Muros"

Na sua vida muros
Minha vida pontes
Ultrapassar
Indecisão
Te esperei
Aos pés das pontes
Você não apareceu
Ficou rente aos muros
Não me viu
Talvez estivesse
Me esperando
Assim
É mais romântico
Murros quero dar
Destruir estes muros
Para que me veja
Te esperando
Nas pontes
Interligando canais
Navegue entre eles
Como todo carma
Talvez algum dia
Nos vejamos em
Veneza
Nesta hora
Tenho certeza
Seremos carnais
Ou
Assim
Murros quero dar
Destruir muros
Ficar somente pontes
Interligando canais
Como todo carma
Te espero em Veneza
Ou
Assim
Vou destruir muros
Para que me veja
Navegue nos canais
Carnais
Talvez algum dia
Nos vejamos em Veneza.

Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠ Morta

Eu sonhei com você
Mas você não existe
Tem sua cara quadrada
Mas
Possui minhas palavras
Tão sonhadas
Sonhei profundo
Desejei demorado
E os movimentos
Que articulou
Eu inventei
Para você fazer
É imaginário
Não existe
Resiste em meus pensamentos
Voa sobre eles
Mas você não existe
É ilusão
É minha invenção
Sobre o seu calor em meu corpo
Você não existe
Resiste
Mas agora vou desistir


Em sonhar
Sobre você
É só mentira
De um corpo vivo
Sem alma
Sem vida
Para viver
O que sinto por você.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠O medico e o escritor
Era uma vez, na perdida do tempo, se encontraram o médico e escritor.
E na lasca do destino sentaram-se juntos e formataram uma prosa.
E no dialogo, ao findar da noite, perguntaram-se:
– Me esqueci, o que você faz mesmo? O outro respondeu:
– Eu curo os defeitos do homem, sou médico.
– Você cura o quê?
– Os enfermos.
– Quais enfermos?
– Enfermos do corpo, os do espírito somente Deus cura. E você, o que faz?
– Eu escrevo o pensamento do espírito, a ilusão, palavras de sentimento, a percepção das pessoas perante a vida.
E o médico diagnosticou:
– Então, concluindo, somos todos enfermos! Eu vendo o diagnóstico e você atravessa com palavras de consolo.
– Não, doutor. Deus nos criou perfeitos, a concepção nos fez imperfeitos.
– Então, para ser medico também tem que ser escritor. O literato respondeu:
– Há várias formas de cura, a física e a espiritual.
– Então o que nos une no mais profundo?
– A dor é o que nos prende. Você, médico, acalma e silencia esta dor. O escritor roda no escrever sobre o caminho delineado do existir. De onde “derivou” a dor, as expressões enfermas, a “trajetória agonia” do quotidiano que gera toda a moléstia.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠A perversidade
Tinha ido ao mercado naquele dia para comprar balangandãns e trama para enfeitar-se no dia do casamento.
Andou,procurou,escolheu e se adornou das melhores peças. Chamaria mais atenção do que a prometida.
De volta para casa notou-se seguida por uma mulher vestida de cinza, de olhos devoradores.
Esgueirou-se pelas paredes curvilíneas da circunferência das ruas, onde as corujas já confabulavam com o anoitecer.
O medo apertou e, na soleira iluminada da porta de alguém desconhecido, parou dominada pelo receio.
O imaginar derramou e observou a rua pacata corcoveando solitária nas sombras do crepúsculo.
Apressou seu caminhar agarrada às suas compras.
A lua iluminou seus passos e avisava que as horas se passavam apressadamente.
Urgiam, latejava em sua aura o temor.
Avistou sua moradia e mesmo atrasada seu coração aquietou-se. Chegou, pôs a chave em casa, entrou e ela apareceu entre as grades do portão vestida de cinza, de olhos vorazes, se ofereceu com voz macia.
Sua presença imaginária anunciou:
– Esqueceu-se do perfume senhora.
– Não quero mais nada, já basta.
– Nada é falta, compre minha essência.
E ela comprou a profundeza dos cheiros.
No dia prometido perfumou-se de ausência e madrugou morta.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠Lagarteando
“Casei
Engrandeci
Achei que era eu
Dona de meu nariz
Agora
Senhora
Dona das minhas horas
Só eu não sabia
Que neste ensejo
Era outro fruto”
Aprontei-me, modifiquei o tom de voz para cara metade, dona do
mundo, de mim, dos outros em meu caminho.
Acima dos conselhos, arrastando outro sobrenome que nunca residiu em meu nome e escolhi:
– Qual carne, senhora!? Filé, contrafilé, alcatra, coxão-mole?
Pensando: ”coxão-mole jamais, nunca...”
– Que é isto aqui?
– Lagarto senhora.
– Tá bonito. Quanto pesa?
– Dois quilos.
– Pode cortar em bifes de um dedo de espessura (cara-metade gostava).
Pronto, dei ordem, criei coragem. E o pior, ele obedeceu,vendeu e eu comprei a idiotice.
Aprontei a mesa, taças com haste longas, toalhas de linho, porcelanas dos antepassados, purê de batatas com queijo roquefort à luz de velas.
Frigideira ao fogo, azeite espanhol para fritar e os bifes de lagarto, com um dedo de espessura enrolaram como orelhas.
Comemos só purê com vinho tinto, culpei o açougueiro e o cachorro passou bem.
As velas derreteram, me envolvi no calor de apaixonar.
Minha sogra não viu, e nesse andamento, não revirou meu lixo. Sucesso apaixonado e estendi minha receita com proveito.
E o dia alvoreceu em paz.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠Espera

Você me cozinhou
Não sei dizer se
Por aflição
Ou compaixão

Cozinhou
Verbalizou
Sentiu e
Aconteceu
Do seu lado

Do meu lado
Aqueceu
Dourou sentimentos
Te esperou
Te agradou
E escorreu

Pelo meu rosto
Subscrição
Apalermada
Abalada
Assustada

Do seu rosto
Ousado

Audacioso
Arrojado
Atrevido
Abalanceado

E no tremor
Do quebra-luz
Aquém
Do subornável
No agitar dos sedimentos
Estremecimentos

Nós
Apesar de tudo
Vivemos o todo.

Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠Inverno Intenso

Não era verão
Mas choveu

Era inverno
E a água desceu

Não era hora
Mas agora
Aconteceu
E com a terra encharcada
O que há de se fazer?

O frio seria intenso
Com a terra molhada
Brota
Tudo brota

E eu nesse sentimento
Nesta terra sem tempo exato

Vou trocar de roupa
Viver outros sentimentos
Outros tempos
Passar
Outras horas
Até que tudo se resolva
No tempo exato
Do coração.

Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠Meu Deus

Quero ir embora
Quero ir para o meu Goiás

Lá ando nu
Pelas savanas
Escondo-me no capim dourado
Vestido de bicho bravo

Quero ir embora, meu Deus.
Quero ir para o meu Goiás
Ficar debaixo do sol
Manobrando meus instintos
Atento aos ruídas do dia
Beber água do absoluto Araguaia
Ficar lá só e somente

Onde nada toca insistentemente
E tudo roça levemente

Ai, meu Deus,
Quero ir embora
Quero ir para o meu Goiás

Onde a lua cheia
Clareia as queda d’água
E polvilha de choro
Que as avista
Quero ir embora, meu Deus.
Mergulhar à noite
Em seus grãos dourados
Sentir-me empoeirada
De ventas de todo Brasil

E neste batismo
Quero ir para o meu Goiás
Chegará planície
E nesta lonjura
Avistar a chuva
Esconder nas vielas
Cheirar outros tempos
Amainar a saudade.


Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠Exercício

Não posso ver
Mas posso sentir
Não posso tocar
Mas posso vibrar


Não posso falar
Mas possuo imaginação


Não posso caminhar até você
Mas posso voar até você


Não posso vociferar seu nome
Mas posso flutuar em suas palavras

Posso
Posso
Posso


Até que tudo passe
Vire outra paisagem
E nesta
Miragem
Você ainda
Me pertence.


Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠Código

Havia em você uma ética e um código que nunca decifrei
Havia alamedas em seu falar onde nunca andei

Havia sabores em seus beijos que nunca experimentei
Havia muito mais
Que nunca descortinei

Medo
Muito medo

Você não sinalizou
E me perdi

Hoje você passa
Me desconhece
E no paralelo
Desse desencontro
Vestígios

Alucinada
Inesperada
Incendiária
Inconseqüente
Eu fui
Em avançar sobre você

Não me inscrevi
Assediei
Havia exercícios
Que nunca professei
Simplesmente
Tropecei
Na ordinária declaração
Do regulamento

Abri meus braços
Meu coração
Depus minha oração
E você
Não me viu

Me desculpe
Por favor
Não se assuste
Isto passa
Com o tempo

Vira páginas
Mas repagina
Meu
Viver.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury

⁠Nem doce,nem amargo


Na cozinha, as notícias chegavam mais depressa ao fogo ameno. As criadas afagavam, pajeavam uma geração e fraseavam o inominável. Lembro-me de suas mãos quentes alisando minhas meias e eu sonolenta, bagunçando os cabelos em cachos nas almofadas do sofá da sala de minha avó. Elas me sacudiam e diziam:
– Se não ficar inteira para a missa, não tem doce de cidra nem novela
à noite.
As missas eram sonolentas e as pessoas vestidas do “primeiro dia da semana” se espreguiçavam em minha mente até ao almoço.
Era um dia morno, não havia novelas e a circunferência dos doces era vigiada e eu me frustrava com a falta das babás.
Verdadeiramente, não precisava delas, mas elas me bendiziam de suas falas e eu, como elas queria decifrar esse desejo.
E elas sabiam das promessas, do artifício, da magia de como chegar ao altar.
E sabiam muito mais, do veneno, da nudez debaixo dos lençóis bordados com capricho em ponto cheio.
Ninguém conversava sobre “isso” e, quando perguntava, tinha resposta certa:
– Já é hora de você dormir!
Na minha imaginação nada repousava, ficava na fantasia, esta geografia indecifrável e a língua solta de minha bisavó.
– Minha filha o “it” fica debaixo das saias.
Eu levantava as minhas, debaixo as anáguas e barbatanas e achava tudo tão incrédulo.
Acordava, e a novidade do dia: não entendia como, mas a vizinha havia “pulado a cerca”. Havia um falatório metafórico na cozinha não percebia onde estava o “cerco” onde só existiam muretas.
O “it”, o charme, o magnetismo, o encanto pessoal ainda são um mistério que abrocha do ser repentinamente.
Ferver, pular, ainda pode ser afetuoso e cítrico como doce de cidra. E o descrente ainda perdura nos amores alambrados.


Livro: Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠Miseráveis
E a vida passa lenta como uma procissão lagarteando à margem da vida, cheia de mulheres adornadas de preto vestidas de morte, viúvas da felicidade .
Agarradas ao terço como se fossem lembranças perdidas, murmurando frases inaudíveis, confusas numa convocação de um encontro logrado no tempo de amar.
Choram as dezenas de anos como mistérios não revelados perfurados pelo tempo.
Todos os dias são Quarta-Feira de Trevas perseguidas por homens encapuzados, carregando “seu Cristo” ferido no andor intermitente a vida inteira.
Não olham para as calçadas da existência, são o extermínio querendo chegar de costas e surpreender a infelicidade.
Algumas nunca saem da procissão, do cortejo escuro atrás de sentimentos que somente sangram.
Adoradoras do infortúnio e da miséria.
Choram sangue e caminham com a indigência, desconhecem “O Deus da Felicidade e da Fortuna”.
Não rezam, lamentam.
Jamais convocam, murmuram frases.
Não confiam, esperam acontecer.
Sempre com receio; em atrição. Deslembradas da contrição.

⁠O Guardião


Na porta do tempo, todos os dias têm um Soldado que guarda a entrada do Dia e puxa os lençóis da Noite.
Tudo na hora certa, matematicamente de uma precisão exata. Cansado dos anos, das horas de sentinela, o Soldado reclamou ao Crepúsculo da sua solidão.
Queria companhia, o isolamento ecoava cores de espectros. O Crepúsculo argumentou ao Soldado:
– Mas você não está sozinho, tem o Dia, o Sol, as Nuvens, avista as tempestades ao longe. No demais, nunca vai saber com que roupa o Dia vai sair e ainda tem a Noite, que chega elegante, às vezes chora, é dramática, tem broche no peito adornado de brilhantes.
O Soldado reclamou:
– Mas o Dia é desorganizado e bagunçado, às vezes, se veste com manga ou sem manga, simplesmente navega e acontece.
– Mas que prefere – perguntou o Crepúsculo?
– Uma associação, um afeto, disse o Soldado.
O Crepúsculo conversou com o Dia e a Noite, e no consenso, emprestaram uma Estrela no peito do Soldado guardião.
– Mas você, que foi ostentoso e observador, vamos enfeitar seu isolamento com uma Estrela que adornará sua ombreira.
O Dia, o grande negociador, bateu o martelo.
Ficou o Soldado feliz, agora não ficaria só com a Noite, que o fazia conversar permanentemente com a sua solidão; tinha Estrela para apaziguar seu imperativo.
Ficou deslumbrado com sua elegância, aparecia sempre elegante, de pouca conversa, não discordava, somente piscava, deixava passar. Estrela dormia muito durante o dia. Conversava incessantemente com a Lua, amiga íntima.
O Soldado, cada vez mais apaixonado, se esquecera do combinado. Passou a decretar mesa posta na hora perfeita, jantares perfumados e fumegantes para saciar seu desejo.
Estrela se queixou dos afazeres para a Constelação.
O Dia, enamorado de longa data por Estrela viu a batalha anunciada. O Corpo Astral deliberou sobre a palavra “emprestar” e se concluiu que era ceder.
Na disputa, os aspectos, os Ares advogados, concluíram que ceder podia ser renunciar ou abdicar.
E virou guerra, o Soldado armado, o Dia almejando vingança.
Na ocasião do duelo Estrela partiu, a oportunidade marchou com apetite de retaliação.
O Dia estava com fome
comeu toda a Noite
mas sobrou a Lua
que ao correr do Dia
foi devorada
A Noite queria se vingar
comeu todo o Dia
fez a Escuridão aparecer
Combateram.
No mais restaram poucos amigos, cada um no seu tempo ajuizado. Do Soldado sobrou um apagão sentimental e uma sina, uma Estrela Rutilada decorando lembranças em seu uniforme para sempre, dos tempos largados em ação.


Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠Vestida de palavras
Era uma vez... (e toda vez, nas difusas da imaginação,
começa assim) um quarto, e ele guardava um espelho grande que se agarrava à parede revelando as verdades.
Do lado impertinente e absoluto, descansado sobre a cômoda, um relógio quieto, mas veloz.
Sobre a cama, derramando intensidade, um vestido vermelho
que o tempo do relógio desbotou, mas o espelho mostrava que ele tinha ainda encanto guardado em lembranças.
Hesitante, perambulando pelo quarto, a mulher ia, de um
lado, ao outro, querendo enganar o relógio, fingindo sua aparente angústia ao espelho que apreciava o vestido, e ele se incumbia de carregar sonhos.
Frente ao espelho descortinou sua nudez, sua brancura. Abriu a lateral do criado-mudo e retirou um pote de creme. Espalhou sobre sua pele para acetinar o trincado do tempo a disfarçar e enganar o espelho por minutos naquele dia.
Recolheu o vestido sobre a cama e se cobriu dele. VERMELHO corajoso ajustado em seu corpo, abraçando os parágrafos de suas curvas, sem brigar por espaço.
Olhou para o relógio, o tempo, ele sim, brigava com ela,
apertava sua alma, não a largava nem um minuto sozinha para decidir e refletir.
Enérgicas são as horas, mostram o compasso.
Ela se mirou vestida ao espelho, olhou o pote abandonado sobre a mesa de cabeceira.
Abriu a porta e saiu do seu mundo, pôs na bolsa a sua
fantasia e decidiu acima das horas, dos segundos e minutos e não enganou a si mesma.
Lembrou-se de alguma frase, riu, saboreou, se revestiu dele,
Fernando Pessoa:
“Mas eu não tenho problemas, tenho só mistérios.”
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury

⁠Casamento de Cláudia
A igreja estava preparada, a noiva bordada do fio de cabelo
aos sapatos pontiagudos. O noivo pronto, embrulhado para ser somente ator coadjuvante, os violinos afinados para chorar e os pais ansiosamente educados.
Convidados paramentados, outros salivando a festa, flores aprumadas à passagem de quem tinha fita no cabelo e queria se casar e já podia se casar.
Todo casamento vibra em um só acorde: o emocionante que escorre das pedrarias até as lágrimas dos mais íntimos.
Lágrimas escorridas talvez nesta única vez aos sons musicais.
Promessas sacudidas, retumbadas, vibradas e ecoadas ao pé direito do Altíssimo de todas as igrejas. Amarrando intenções de amor, de muito amor, amor que transforma, modifica a cada dia, face a face ao espelho.
O sacerdote pergunta a todos:
– Quem acha que se casou com o mesmo homem/mulher que há 30 anos?
Murmúrios... e continuou.
– Se acharem que são os mesmos, estão todos mentindo, não são, todos mudam. Vocês se enganaram, equivocaram e acham que permanecem felizes.
Rita assustou-se, soluçou, escorreu lágrimas e Rosa abriu a magia de toda bolsa e lhe deu maquiagem para representar e atuar.
Na festa, surpresas do talher, ao som que empurra pares a sacudir o que lhes fora ofertado: bebidas geladas em copos suados.
Madrugada, a noiva não desiste, joga o “bouquet” com golpe de astúcia para que todos alcancem e apreciem a sua vitória.
Alguém alcança, transpirada, e mostra a todos que ela também tem chance.
Na saída, o café perfumado, a montanha dos “bem casados”
empilhados à espera.
Rita apreciou, tinha que levar todos; eram bem casados, na bolsa ficariam espremidos e escolheu o decote como esconderijo.
Encheu, contornou os seios do que era mais doce, os “bemcasados”.
Na saída, a champanhe borbulhou em sua cabeça, o salto agarrou em alguma greta, caiu de ponta, espremeu “bem-casados” contra o peito.
Amarrotados, não restou nenhum para que pudesse degustar, amassaram-se e esborracharam.
E todos foram socorrer a vítima transbordando doce de leite.
Mas toda boa intenção também é doce.
Rita só queria ser bem casada.
“QUEM QUER CASAR COM D. BARATINHA? QUE TEM FITA NO CABELO E DINHEIRO NA CAIXINHA?”
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury