Coleção pessoal de raulbardeiga

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⁠Nascemos sem consentimento, herdamos uma dívida que nunca contraímos e somos obrigados a pagá-la com sofrimento. Odeio a vida como um prisioneiro odeia sua cela — mas até meu ódio é parte da sentença, pois prova que ainda me iludo achando que a liberdade seria possível.

⁠Amo você como um espirro —
involuntário,
irreprimível,
rasgo brusco no tecido do dia,
me atravessa sem pedir,
me expulsa de mim.

Amo como o bocejo —
contagioso,
inevitável,
boca aberta pro mistério
que escapa das palavras.

Amo você assim:
sem querer, querendo,
sem saber, sabendo,
como se ama o ar —
que entra e sai
sem pedir licença,
e nem percebemos
até faltar.

⁠Você me pergunta se eu te amo.
Digo que sim.
Você me pergunta o porquê.

Mas a resposta não cabe nas palavras.
Ela mora nos gestos que escapam da boca:
nas panquecas com mel feitas de surpresa,
no silêncio que não coça a garganta,
no erro que você comete
e eu deixo passar como nuvem.
Não por dó —
mas porque o amor é míope (como eu sou)
e prefere enxergar embaçado.

O amor é transcendental.
Ou seja: escapa.
Foge das definições como um gato —
no peitoril da janela,
olha para você, mas não obedece:
é a imprevisibilidade que se deixa ficar.
É um peixe vivo na banheira da alma —
algo inadequado, mas presente.
Ou a sombra de um pássaro:
risca o chão e some antes de você apontar —
pura efemeridade.

É sagrado,
porque é inútil (não serve para nada).
Como um copo d’água na madrugada —
não sacia, só umedece os lábios.
É real,
porque não precisa ser provado.

E é impossível.
Como traduzir o cheiro da chuva
sem nomear a saudade?

⁠É preciso estar em silêncio.
Não o silêncio de fora —
o de dentro.
Aquele que vem quando a alma
para de se explicar.

Só assim. Só no vazio do ruído
é que as coisas miúdas falam.
E elas — tão pequenas —
são as mais belas.
Porque são as únicas verdadeiras.

A cachoeira escorrendo sobre as pedras,
sem pressa de chegar.
O pássaro tecendo o ninho,
com o mesmo fio do tempo.
A semente rachando o solo,
num instante que ninguém vê.

As coisas pequenas —
essas, sim, sussurram em maiúsculas.
São tímidas, como o amor
quando ainda é um segredo.
Mas belas. Inteiras.

Mas a paixão...
ah, essa berra.
Espetada no peito,
atropela as frases,
rouba o fôlego e o sentido.
E cega.
E ensurdece.
E transforma o outro
num eco do que falta em nós.

O amor não.
O amor é a pausa.
Espera a febre passar.
Senta ao lado.
Não exige.
Olha —
e reconhece.

Só quando tudo se aquieta
é que o coração entrega
sua palavra crua.
Só quem para — de verdade —
ouve, enfim,
o que as bocas nunca disseram.

E então, no silêncio que sobra,
toca o impossível:
ser entendido
sem precisar falar.

⁠⁠Anti-Soneto da Fidelidade

De nada, ao meu tédio serei atento –
Antes, e sem zelo, e nunca, e tão pouco,
Que mesmo em seu abraço, em seu fogo louco,
Me farei cinza dispersa no vento.

E quando, enfim, me for (resto de resto),
Cuspindo à paz alheia minha náusea,
É porque o amor nunca existiu – e a fome
De nada me devora, cruel e ácida.

Tudo, o peso podre da memória,
Me dissolverá. Farei meu corpo escombro.
E então a entregarei à minha queda,
Que será, em segundos, esquecimento.

Sempre, ao nada, sempre e em fim: o que não tem.

(Inspirado no "Soneto da Fidelidade" de Vinícius de Moraes)

⁠Hoje pensei em você. E sorri.
(O sorriso veio antes que eu soubesse o que ele queria. Como um reflexo do joelho, mas do espírito).
A boca obedeceu antes de a alma pedir permissão.

O sorriso veio de um lugar anterior à boca:
nasceu nas costas, subiu pelos ombros,
como uma criança que sobe em árvore, roubando fruta verde.
E então, já sem jeito, se derramou nos lábios.
Um pássaro que caiu do ninho,
antes de aprender a voar.

(E agora o sorriso ficou preso nos dentes —
um resto de você que mastigo sem querer.)

É difícil me sentir tocada pelos outros quando a ansiedade me consome. Tudo se antecipa em minha mente antes de acontecer. Primeiro, me dobra por dentro, e só depois o fato se revela, já desdobrado. As surpresas, contudo, são sempre boas, porque vêm do inesperado. Por elas, as coisas boas aparecem. Por elas, sou tocada. E é por elas que o não esperar se faz tudo.

⁠Malditos sejam os deuses!
que nos deram só a febre —
e não o infinito para ardê-la!
aqueles que plantam a dor em nossos corpos
e a regam com o veneno da incerteza.
Deus — ou seja lá quem desenhou esse esboço de carne —
condenou-me a ser
um ser tão pequeno, tão estreitamente humano,
e ainda assim —
carregado de sonhos desmedidos,
maiores que os pulmões onde tento respirá-los,
maiores que o corpo onde tento suportá-los!
Pela janela da minha casa,
o céu me olha com indiferença —
infinito, azul, mudo.
Tão vasto quanto o desejo de nele desaparecer,
de me dissolver em nuvem, em vento,
em qualquer coisa que não saiba o que é ser eu.
Malditos sejam os deuses que,
no entanto, deixam a dor crescer em nós,
como uma árvore podre,
somente para se deliciar com o vento que a faz tombar.

⁠Viver — ah, viver! — é morrer em prestações diárias,
como um empréstimo mal feito ao universo.
Não há justiça no tempo.
Não há lógica nas intenções.
É uma punhalada embebida em perfume barato.
A inveja, a rejeição, e essa miríade de pequenas mortes sociais,
são os pregos do caixão onde nos deitamos acordados, sorrindo,
porque aprenderam-nos a chamar isso de vida.
É essa dor que não nos mata porque nos quer eternos.
Ah, se ao menos a consciência fosse um pouco mais burra,
ou o coração menos estúpido,
talvez o simples ato de respirar não doesse tanto.

⁠Há um engarrafamento em minha cabeça.
Não de carros — desses já me cansei nas ruas —
mas de pensamentos.
Ideias que bateram uma na outra como caminhões desgovernados.
Palavras estilhaçadas. Conceitos esmagados.
E eu, no meio,
como um pedestre distraído que atravessou fora da faixa da lógica.
Meu psicológico está acidentado.
Não é figura de linguagem, não!
É um fato clínico — e ninguém sinalizou o caos.
E tudo continua fluindo lá fora —
gente indo, vindo, vivendo!
E eu? Eu estou aqui, preso entre as ferragens,
num cruzamento sem sinal,
onde todos os caminhos levam ao mesmo lugar:
nenhum.

⁠Ah, para acender uma vela, o que é necessário?
É preciso que a escuridão me engula primeiro,
que ela me envolva e me consuma,
que eu não veja sequer o mais tímido raio de luz.
Não, não se pode gerar luz onde não há sombra,
onde não há ignorância,
onde o ser não é forçado a ser,
a querer, a tentar.
A luz existe porque a treva a empurra,
porque sem o medo do escuro, sem o cansaço de lutar contra ele,
não haveria chama,
não haveria sequer o esforço de um gesto.

⁠Talvez isto tudo — eu, os animais, o tédio —
seja um sonho na mente de Deus.
Se ao menos fosse meu,
eu podia acordar. Ou morrer.
Mas é sonho de Deus,
e Deus está distraído.