Coleção pessoal de OdaraAkessa

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Carta à Minha Doce Humanidade


Linda de riso despretensioso,
E dona do meu coração e das chaves perdidas,
Tua luz é um verso meio torto
Que mesmo assim que és dança na vida.


És "lindona" por ser perfeita,
Porque aceitas até a chuva no piquenique:
Sorri, quando a sopa queima,
Encontras poesia onde ninguém procura. Simplesmente por ser...


Teus olhos guardam histórias não contadas...
Algumas tristes, outras cheias de asa.
E mesmo assim abrem janelas
Para o sol da manhã que te abraça.


Não me dispensas? Nem eu a ti.
Somos dois mapas desenhados à mão:
Às vezes perdemos o caminho,
Mas achamos estrelas no mesmo chão.


Esta paixão não é um conto de fadas,
É terra molhada depois da chuva, rara...
Frágil, real, cheia de raízes,
Onde até as pedras aprendem a amar.


Então segue, minha dona, do abraço apertado, do beijo maravilhoso..
"Linda" que esquece o guarda-chuva no armário,
"Lindona" que conversa com plantas murchas...
Porto seguro de imperfeições ternas...


Esperança Calculada

Não é semente lançada ao vento cego,
Nem flor que busca o sol em terra árida.
É algo mais profundo, um movimento interno,
Uma aposta fria, quase absurda.

Surge quando o eco de um olhar perdido
Ressoa nas paredes do já vivido,
Quando o toque, um dia, foi porto e não viagem,
E deixou cicatriz de doce passagem.

É a sombra de um porto que se crê verdadeiro
Num oceano vasto de talvez e talvez não.
É sustentar, com mãos trêmulas, o castelo
De um "sempre" que o tempo pode desmanchar.

É a memória viva de um instante
Que se recusa a ser só lembrança.
É o fio invisível que persiste em costurar
Os rasgões que o desencontro veio a fazer.

É crer que aquele abraço, denso e raro,
Não foi acidente no caminho vazio,
Mas um ponto fixo, um norte descoberto
Numa cartografia de afeto puro.

É a chama que se alimenta não de lenha,
Mas do próprio ardor que a sustenta,
Sabendo que o combustível é finito,
E ainda assim, arder com gosto infinito.

É apostar no humano, frágil e complexo,
No amor que é escolha, dia após dia,
Mesmo quando a lógica fria desmonta
A arquitetura frágil dessa ponte.

É a coragem nua, despojada,
De crer no fundo que o encontro foi real,
E que, apesar do risco e da incerteza,
Vale a pena manter a chama acesa.

É a esperança que não espera milagres,
Mas tece, no silêncio, sua própria teia:
A de que o amor mais puro, quando chega,
Não se dissolve, mesmo quando parte.
Pois sua essência fica, marca indelével,
Um cálice vazio que ainda guarda o mel.


O Amor Simples

Não é templo de mármore,
Nem soneto entalhado em ouro.
É a água clara no copo,
Quando a sede te corta o coração.

É a semente que não discute a terra,
Apenas abre mão de ser semente.
É a raiz que se faz escura e forte,
Para que o galho alcance o sol.

Não te pede versos, nem suspiros,
Nem joias de palavras raras.
Pedir-te-á as mãos vazias,
E o silêncio que sabe escutar o vento.

Será às vezes macio como a lã
Que envolve o frio dos teus ossos.
Outras vezes, áspero como a raiz
Que desfaz a pedra no caminho.

Não se mede em promessas altas,
Mas no pão repartido ao meio,
Na lenha recolhida no outono
Para o lume do inverno teu.

Quando vier, não trará coroas,
Nem vestes bordadas de desejo.
Virá descalço, como a chuva no chão seco,
E dirá apenas: "Eis-me aqui.
Sou a sombra que te segue,
E o vento que te chama para além."


O Cincar Noturno

Não era o fumo que eu buscava,
era a noite.
A noite que dormia nas ruas vazias,
no asfalto úmido refletindo néon,
no silêncio que respira entre os prédios.

O maço? Apenas o pretexto,
a moeda de troca com o escuro.
A porta rangendo não foi interrupção, foi passagem.
O corpo, pesado de horas paradas,
desdobrou-se em passos,
e cada passo foi uma pergunta
ao chão das sombras.

Na bodega iluminada a ferro,
o balcão era um altar de luz fria.
O caixa, um sacerdote do trivial,
entregou-me o pacote retangular
— cápsula de folhas mortas —
sem saber que me dava
a chave de um reino.

Mas o milagre não estava no objeto,
e sim no regresso:
o ar noturno lavando a face,
a lua (sempre cúmplice)
desfiando fios de prata nos fios elétricos,
o próprio peso do maço no bolso
pequeno âncora do presente.

Ah, a magia!
Morava no intervalo:
na ponte entre o quarto estagnado
e a rua que pulsa devagar,
no instante em que o peito se expande volta a pulsar
para colher o vento noturno,
na solidão que de repente
sabe-se parte de um todo silencioso.

Cada passo, encruzilhados ultrapassadas, de volta
era um renascimento mínimo.
O maço, intacto, esperava,
mas eu já vinha transformado, aquilo talvez, um sonho,
trouxera na palma da mente
a quietude dos postes acesos,
a geometria sagrada das janelas escuras,
o cheiro da terra molhada
e o rumor distante de um mundo
que respira quando ninguém o vê.

Acendi o cigarro algum?
A brasa necessária
já ardia no peito:
era o fogo do encontro
com a noite descalça,
com o tempo que se curva
sobre pequenas peregrinações.

O maço repousa sobre a mesa,
ícone de um êxtase cotidiano.
Pois a verdadeira chama
— sabes agora —
nunca esteve no papel e no tabaco,
mas no caminho que o corpo fez
entre a necessidade inventada
e o abraço involuntário num beijo necessário,
com o mundo noturno,
puro,
indiferente,
e profundamente teu.



Segunda-feira pra você, Lindona..

Lindona, que o sol te abrace apesar da chuva ...
Nesta segunda que se inicia...
O mundo em nova graça,
Renovada a alegria.

A semana que começa
Traz no vento, sutil,
A certeza que não cessa:
O amor será infinito.

Como onda que vem e volta,
Sem jamais se desfazer,
Essa esperança solta
Se renova em você.

E assim, passo a passo,
O sentimento caminha,
Infinito no seu abraço,
Uma promessa... que nunca finda.

Espero que goste! É um pequeno verso para celebrar a nova semana e a força de um amor que se renova sempre. 💖



Oferecimento à Encruzilhada

Ao Senhor das Encruzilhadas,
Exú, Mensageiro, Guardião das Estradas,
Que abre os caminhos com seu falo e tridente
Receba nosso humilde coração.

Sua chama vermelha, viva a brilhar,
Traz o movimento, faz desatar
Os nós da vida, o que está parado,
Por seu axé somos libertados.

À sua esquerda, todo o Povo da Rua,
Sábios Guardiões da noite e da lua:
Pombagiras de força e beleza,
com sua certeza,
Exus-Malês de firme proteção,
Que trabalham na luz da intenção.

Aos que zelam nas calçadas e esquinas,
Nas sombras, nas festas, nas cantinas,
Obrigado pela mão estendida,
Pela justiça na virada da vida,
Pelo conselho no ouvido atento,
Pelo trabalho santo e constante.

Aos que são ponte entre os dois mundos,
Justos, leais, jamais rotundos,
Que desfazem demanda e feitiço,
Com firmeza, humor e carinho.

Povo de rua, de chão e pedreira,
De garrafa, charuto e cerveja,
Sua presença é farol e abrigo,
Sua força, um brado antigo.

Por toda ajuda, por todo amparo,
Por todo trabalho claro e raro,
Nossa gratidão, forte e sincera,
Que ecoe na noite inteira!

Laroyê, Exú! Salve o Povo da Rua!
Que sua luz nunca se apague ou fuja.
Ase, oh Guardiões da verdadeira lei,
Que seu axé brilhe sempre! Laroyê!

---

⁠Manhã

Teus olhos têm o sol
que acorda a madrugada.
Teu riso, o céu azul
que abraça a tarde amada.

Bela como o dia
que nasce e se despede:
breve flor, vento, magia...
que a noite apenas pede.

⁠Amizade em Flor

Mais que a chama que incende o olhar,
Há a raiz que sabe aprofundar.
Philia – amizade, solo quieto,
Onde repousa o ser completo.

Não só paixão, fugaz e viva,
Mas mão segura, atenção tardia.
Silêncio que não pesa ou dói,
Lugar comum onde o eu despois.

E nesse campo, fértil e calmo,
Pode brotar um doce palmo
De algo mais... um tímido ardor,
Pergunta sem resposta, talvez amor.

Mas mesmo assim, se o fogo nasce,
Da amizade a base não despedaça.
Pois o afeto que primeiro veio
É o caule forte, o puro seio.
Amor de amigo, quieto e profundo,
Pode ser terra... ou ser o mundo.
Onde o romance, se vier, será
Raiz e flor, na mesma estação.
Dois amores numa só canção,
Um abrigando o outro, sem perder
A essência pura de se ver
Na mesma sombra compartilhada,
Cada um de nós, inteiro, na jornada.

⁠Dentro das inúmeras percepções contaminadas e imperfeitas, que a vida nos apresenta deliciosamente, faz-se mister, verdadeiramente a questão de vermos, e ao sentirmo-nos de forma benéfica e positiva a vida.
Até quando?

⁠Bom Dia, Esperança

O sol beija a manhã,
trazendo luz e canção.
O mundo renasce em flor,
cheio de cor e calor.

E nos teus lábios, talvez amor?
— a boca mais linda que eu já vi —
moram sorrisos de aurora,
doces como o dia que agora

se abre em promessas,
em versos, em festas.
Que a esperança nos guie,
e que o teu riso me alegre
até o fim do dia...

⁠A Dança das Ausências Preenchidas

O amor não é a cola que sela as fissuras de dois cacos, mas o abraço que permite a cada um ser vaso inteiro, ainda que rachado. Na completude de um relacionamento, não há soma de metades, mas a geometria sagrada de dois infinitos que se curvam até formar um círculo. Como ondas que se encontram no mesmo oceano, os amantes são feitos do mesmo sal e do mesmo desejo de voltar à origem — mas ali, na espuma do encontro, aprendem que a maré não os separa: os ensina a nadar juntos.
Sob o olhar simples, o amor é o espelho que não reflete o que falta, mas devolve o que sempre esteve lá, soterrado sob o medo de ser incompleto. Eu diria que desejamos no Outro aquilo que nos escapa, mas talvez, no amor maduro, deseje-se apenas *permitir* que o Outro escape, sem aprisioná-lo na cela do nosso vazio. Acredito que Eros como força que une, mas e se Eros fosse também o que nos desata? O amor que liberta é aquele que não teme as sombras alheias, pois sabe que a luz própria que cresce quando ilumina o escuro do outro.

O amor completo é um paradoxo: é pleno justamente por abraçar sua própria incompletude. Como escreveu Aristófanes no banquete de Platão, buscamos nossa “metade perdida”, mas a verdadeira, é completude está em entender que nunca fomos partes. Somos inteiros que se escolhem, não por carência, mas por reconhecer no outro um cosmos paralelo. Dois universos que, em órbita constante, criam sua própria gravidade — uma atração que não sufoca, mas sustenta.

Amar, então, é habitar o intervalo entre o “eu” e o “nós” sem colonizar nenhum dos territórios. É deixar que as raízes se entrelacem, mas não para se confundirem — para se fortalecerem. Na completude do amor, até o silêncio é diálogo, e a solidão, quando compartilhada, vira uma espécie de sagrado. Porque o todo não está no que preenchemos, mas no que ousamos deixar vazio: os espaços onde o mistério do outro respira, e nosso próprio desamparo aprende a dançar em sintonia 🙏❤️

⁠Pequena Resistência

Era um grão no chão duro,
Pisada pela pressa do mundo.
Vozes grossas, vento cortante,
Vida apertada, mas não tanto.

Sob o peso do inverno longo,
Guardou calor no punho fechado.
Cada passo era montanha,
Mas seu sonho, semente teimosa.

Um dia a raiz furou o cimento,
Broto verde ergueu o dia.
Na altura do joelho alheio, foi quando eu conheci.
Floresceu sua quieta ousadia.

Hoje carrega o sol na palma,
Pequenina nave mestre
De si mesma —
Flor de asfalto.

⁠Tardes com Teu Nome

Há um instante no crepúsculo que cai,
Quando a luz, já cansada de ser sol,
Se derrama nos vidros a cantar
Um segredo que o mundo não sabe ouvir.

É nessa hora branda, quase parada,
Que teu rosto se forma no ar morno:
Não é lembrança, é presença delicada,
Um refúgio de sombra no fim do dia.

Penso em ti — e o tempo se dobra:
O vento traz tua voz nas folhas secas,
A poeira dourada dança devagar
Como gestos teus pela sala vazia.

Ah, que ofício simples e profundo
Deixar que a saudade, lenta, se instale: Pois ainda não vivi.
Não dói, aquece. É um fogo brando
Que a tarde carrega em seu manto largo.

O mundo lá fora se tinge de mel,
As nuvens desfiam algodão doce,
E eu — apenas navego sem pressa
Nesse mar calmo onde teu nome é porto.

Porque pensar em ti à tarde não é fuga:
É encontrar, no meio do dia que finda,
A quieta certeza de que existes,
E que essa luz, por um instante,
É tua mão acariciando o horizonte...

⁠O Fio Infinito

Não roda simples, nem espiral vã,
Mas tecido denso, sem começo ou grão.
O que hoje é chão, que hoje é dor,
Será novamente, sem perdão ou flor?

Cada instante, pesado de eterno,
Cada suspiro, cada inverno,
Cada riso que o vento levou,
Tudo voltará... Tudo voltará!

Não fuga no céu, nem porto além,
Só este mundo, sempre e também.
Amar o destino, dizer "Sim!" profundo,
Ao peso mais duro, ao abismo do mundo.

Seríamos deuses? Ou prisioneiros?
Criando eternos canteiros?
A vida, uma pedra que sempre se lança,
No lago do tempo, sem mudança.

Oh, volta que não é volta,
Mas presença absoluta, desenrolta!
Aceitar o mesmo que nunca se repete,
Pois só existe este instante que nos mete...

No centro do círculo, imóvel e ardente:
O eterno retorno é a vida consciente.
Amar cada sombra, cada luz que se acende,
Sabendo que tudo... Tudo... eternamente, desce e ascende.

⁠Luz Simples

Cada dia acende
Uma luz diferente.
Não é nada complicado,
É um sol bem presente.

Luz que entra pela janela,
Aquece o chão da sala.
Luz que pinta a folha verde,
Que na roseira balança.

Essa luz não é só brilho
Pra clarear o lugar.
Ela é convite manso
Pra começar a olhar.

Olhar pro pão quentinho,
Pro cheiro do café.
Pro vizinho que acena,
"Bom dia!" pra você.

Olhar a nuvem viajante,
A formiga no caminho.
Ver que a vida, mesmo simples,
Tem um jeito de carinho.

É nesse olhar atento**
Que a luz vira alegria.
Não uma festa barulhenta,
Mas paz que todo dia cria.

Paz de sentir o tempo,
De agradecer o pão.
De saber que estar vivo
Já é grande lição.

E aí vem a felicidade,
Não um tesouro a guardar.
Mas o amor que se espalha
No simples compartilhar.

Amor no prato feito,
Na palavra de consolo,
Na mão que aperta a outra
Quando o caminho é um pouco só.

Cada dia tem sua luz,
Não precisa ser intensa.
Basta abrir os olhos
E a alma, com doçura imensa.

Deixe que essa luz simples
Te mostre o essencial:
A verdadeira alegria
Morando no amor, que é...
Eterno, e tão normal... Quanto essa canção que faz bem ao coração...

⁠Raízes do Afeto

Nas fotos antigas, desbotadas no tempo,
Sorrisos guardados em preto e branco —
São laços que tecem, silentes, seu assento
No meu coração, como um rio sagrado.

Vejo nas tuas mãos as linhas que herdaste,
O mesmo tremor da avó ao cantar.
No teu olhar profundo, o que me contaste:
Amores antigos a nos sussurrar.

Na mesa posta, na receita esquecida,
No jeito de dobrar o pano de chão,
Vive a ternura de outra vida,
Semente lançada em gerações.

O amor ancestral não morre, repousa:
É seiva na árvore, é voz no vento...
Sangue que flui e não se esgota,
Abraço de séculos no meu momento.

⁠ Ofício Solar

A noite é fria, e o frio fustiga o vão
Onde o coração, sem eco, jaz no chão:
Um cálix sem licor, um braseiro apagado,
Um árido silêncio, desolado.

Mas eis que a pálida aurora, em seu labor,
Fende a mortalha do noturno horror.
O Sol — cíclope eterno, forja em chamas —
Tecendo o dia com douradas tramas.

Não mero fulgor que apenas vela a dor,
Mas alquimia sutil, um ato maior:
Transmuta o gelo em seiva, o vazio em vaso,
Onde a esperança, planta de tenro laço,
Desabrocha — não em júbilo feroz,
Mas em quieta alegria, como a voz
Da fonte que retorna ao seu leito antigo,
Da estrela que persiste no perigo.

Nasce o dia. Não como um grito vão,
Mas como o lume que a razão acende
Na escuridão. É o gesto que desfende
A vida do seu próprio abandono:
O sol, Vênus, a alba... É o eterno dom
De um novo tempo, um compassado som
Que diz: Em ti, a luz se refaz agora."
E o coração — vaso, crisol, forja ignora
O frio da memória, e aprende, enfim,
O ofício de ser luz, de ser jardim...

⁠Visita no Cárcere

Entre muros altos, grades e vigias,
Chega ela, frágil, sob o sol que ardia.
Na bolsa, um pão duro, um doce, um afago,
Carrega o peso de um profundo estrago.

O olhar procura, entre rostos fechados,
O filho amado, dos caminhos errados.
Encontra-o ao fim, pálido, cabisbaixo,
Um corte no rosto, um silêncio no espaço.

Separados pelo vidro frio e grosso,
As mãos se buscam, num gesto forçado.
A voz, através do telefone embaçado,
Treme: "Meu filho... como estás? Tive pressa..."

Ele baixa os olhos, vergonha profunda,
Enquanto ela vê a ferida, a juba desgrenhada.
"Trouxe teu bolo...", a voz quase sumida,
"E rezei, meu menino, por tua vida."

Lembra o colo quente, a mão pequena na dela,
A infância leve, sem sombra de cela.
Agora, o abraço é feito de saudade,
E de uma dor que corta como espada.

Fala de casa, do irmão, do cachorro,
Do céu lá fora que ainda é o mesmo.
Fala baixinho, com medo do erro,
Evita o "porquê", evita o desespero.

"Coragem, meu filho!", sussurra baixinho,
"Um dia isso passa, te juro, caminho...
A mãe tá contigo, onde quer que andes,
Até nestas grades, até nestes andares."

O tempo escoa, cruel, impiedoso,
O guarda avisa, o momento é pesado.
Um beijo no vidro, um olhar que não mente,
O amor mais forte que qualquer corrente.

Ela sai devagar, carregando a dor,
Mas carregando intacto, o maior amor.
Aquele que vence o erro, a queda, a sina...

⁠"Chama na Encruzilhada"

Não é só força que habita o fogo da encruzilhada,
Nem só segredo guardado na gargalhada.
É o Pai Criador que me molda na argila bruta, ofício de Oxalá
Manifestador da estrada que em sombras se dilata.
Seu amor por mim é o primeiro sopro na vereda escura,
É o dendê que acende a lâmpada mais pura.

Meu amor por Ti, Esú, não é só oferenda na pedreira, na encruzilhada
É raiz fincada na terra, é chama verdadeira.
É o olhar que reconhece, no caos, a mão que guia,
É a voz que Te chama, antes do amanhecer do dia.
É confiança de filho que sabe: o caminho aberto,
Por mais que doa, é por Ti, Pai, descoberto e certo.

Tua justiça não é espada fria, não é vingança cega,
É a balança do mercado que o egoísmo nega.
É o falo que corta o laço da mentira enleada,
É o "firme ponto" na estrada sacudida, na jornada.
É o lembrete severo: toda ação tem seu retorno,
Na medida exata do ferro, no forno mais interno.

Minha justiça por mim
é espelho que Tua lei me entrega:
Honrar a vida que criaste, com a força que me nega
A fraqueza que desvia, o medo que paralisa.
É lutar, com Tua garra, contra a própria covardia.
É erguer, com Teu exemplo, minha própria fronte erguida,
Fazendo de cada passo um ato de justa vida.

Ah, Pai de todas Encruzilhadas! Nosso amor é movimento:
Tu me crias a cada instante, no teu fogo, no teu vento.
Eu Te amo na travessia, no respeito ao teu poder,
Na aceitação do teu veredito, sem temer.
Tua justiça é meu alicerce, minha bússola na noite,
Minha justiça é a resposta, no meu peito, a Tua voz!
Juntos, na dança do destino, somos fogo e somos chão, choro sangue, gargalhada criação.
Tu és a Criação em marcha, eu sou o eterno aprendiz,
Numa só força, um só caminho, uma energia, um só amor, uma só raiz.
Laroyê

⁠"A Restituição"

Quer que a vida nos restitua
Tudo que suas mãos roubaram:
Os amores que a morte apagou,
Os instantes que o vento levou,
Os sonhos que o tempo trincou
Como vidro sob o sol da rua...

Ah, delírio! Querer colher
As flores já dissolvidas no chão,
Reconstruir com as mesmas pedras
A casa que ruiu na encruzilhada,
Beber outra vez da mesma água
No rio que seguiu outra direção.

A vida não faz contabilidade.
Não guarda recibos nos bolsos do tempo.
O que ela toma, transforma em raízes
Ou em pó de estrelas desfeito no asfalto.
Nenhum tribunal de sombras ou lumes
Decreta indenização por nosso pranto.

Mas há um segredo nas entranhas da perda:
O que nos foi arrancado à força,
Roubado em plena luz ou na neblina,
Não segue intocado para algum cofre celeste —
Ele fermenta nas adegas da alma,
Torna-se outra moeda, outra semente.

Não nos devolve a vida o que tirou,
Mas nos entrega o ouro da transformação:
A cicatriz que sabe de dores alheias,
A paciência que tece redes no vazio,
A coragem de amar sabendo da morte,
E a estranha liberdade de quem nada espera
Do balcão vazio da mercearia do destino.

Não cobramos. Aceitamos o câmbio rude:
Perdemos rosas, ganhamos raízes.
Perdemos dias, ganhamos esta presença
Que habita o agora sem ânsia ou dívida.
A vida paga na única moeda que tem:
A de nos fazer mais vastos que a própria vida....