Coleção pessoal de joseassun

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⁠Definir algo como fluxo ou fixo é só uma questão de ponto de vista, de escala, de relatividade. Na escala do universo, ou em outro regime de tempo, a montanha que se formou e se transformará lentamente em outra coisa é um fluxo. Do ponto de vista humano, a montanha não pode deixar de ser senão um fixo; mas pode-se apreciar o desabrochar, maturação e morte de uma flor como fluxo. Enquanto isso, para os pequeninos insetos que as polinizam, as flores poderiam ser vistas como fixos. Um ciclo de vida de apenas dois meses obriga a que as abelhas vejam as coisas de uma outra perspectiva que não é a dos homens.

Para os seres humanos, enfim, as estrelas são eternas. Seria possível, não obstante, imaginar um ponto de vista que partisse da formação de uma estrela e percebesse, como fluxo, o processo termonuclear que levará cada estrela a se intensificar, expandir-se, contrair-se e a se extinguir. Enxergar algo como fluxo ou fixo é tão relativo como distinguir matéria e energia. É evidente, por outro lado, que a Geografia e as demais ciências humanas trabalham com as escalas do ser humano.


[trecho extraído de 'Espaço, História, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.85].

Para além dos elementos visuais e sensações que a constituem a partir de um certo olhar, ⁠a paisagem geográfica - ou a percepção geográfica da paisagem - depende simultaneamente de um ponto de vista, de um tema de acesso e de um modo de busca. Se o lugar do observador e a escala de observação conformam instâncias constitutivas fundamentais da paisagem, esta depende ainda de uma temática de acesso e de um modo de busca.

Há um olhar que busca na paisagem as marcas da violência social – material ou simbólica – e que irá procurar os sinais de segregação, a hierarquização espacial da riqueza e da miséria, as tecnologias de segurança, os dispositivos sociais de controle, as cercas e portais que impedem ou franqueiam acesso aos diversos tipos e grupos sociais. Para este olhar, os cartazes que se perfilam na avenida denunciam as tentativas de controlar as tendências de consumo, bem como os artifícios da manipulação política. Há outro olhar que perscruta os estilos arquitetônicos, a história das fachadas, dos adornos e das epígrafes. E, assim, há muitos olhares, cada qual partindo de sua temática de acesso, de modo que não se contempla a paisagem simplesmente, mas nela se busca algo, ao mesmo tempo em que é esta mesma busca que a constitui.

O que se procura com o olhar – a natureza que se enlaça aos artifícios construídos pelos homens, as marcas da produção ou a curiosa ‘história em mosaico’ das tecnologias que se superpõem umas às outras, entre tantos e tantos temas de busca – eis aqui uma instância definidora da paisagem, considerando que esta não pode ser examinada com mera neutralidade, como uma totalidade inerte que já tem tudo ou nada a dizer. Há o que se busca, mas também o modo de busca: o olhar paciente e atento dos botânicos e biólogos, o olhar recriador do artista ou o olhar inquiridor dos cientistas sociais. O policial que investiga o crime.

Cada modo de busca, mais rápido ou lento, detalhista ou generalista, permite que sejam vistas algumas coisas e não outras, que sejam recriados de uma certa maneira os elementos que se combinarão para configurar esta totalidade que se dá a perceber como paisagem. O ponto de vista, a escala, o tema de acesso e o modo de busca, portanto, constituem um primeiro conjunto de chaves requeridas para adentrar o fascinante mundo da paisagem.


[trecho extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.57]

Para além da longuíssima era de comunicação gestual e gutural que precedeu o surgimento da linguagem humana há cerca de 200.000 anos atrás, e para além da 'era da oralidade' que daí de seguiu, podemos dividir a aventura humana em três grandes eras no que concerne aos modos predominantes de se produzir textos’. Desde o surgimento da Escrita, parece ser pertinente destacar três principais épocas que introduzem novos modos de se relacionar com a experiência textual: a ‘era dos manuscritos’, a ‘era dos impressos’, e a ‘era dos textos digitais’. Antes desta sequência – e, na verdade, também ao mesmo tempo – podemos ainda considerar a incontornável dimensão da ‘oralidade’. Afinal, toda civilização – independente de ser uma ‘civilização do manuscrito’, uma ‘civilização do impresso’ ou uma ‘civilização digital’ – é também uma ‘civilização da oralidade’, seja na sua vida cotidiana, seja através de certo percentual de suas realizações culturais.
Não obstante os três grandes períodos que se apoiam no predomínio de uma ‘civilização do manuscrito’, de uma ‘civilização do impresso’ ou de uma ‘civilização digital’, convém lembrar que estas ‘unidades de época’ se referem apenas ao modo predominante de divulgação da escrita textual pública. Afinal, quando um novo padrão de lidar com a feitura e divulgação de textos se estabelece, este não cancela, de modo algum, as práticas relacionadas aos padrões históricos anteriores. O próprio aparecimento histórico da escrita com as primeiras civilizações urbanizadas – evento matricial que introduz essa grande sequencia de possibilidades de textualização que definiremos como três sucessivas ‘unidades de época’ (a do manuscrito, a do impresso e a do digital) – não excluiu, como já mencionamos e com bastante obviedade, o padrão da oralidade. Além da fala mediar uma parte preponderante das relações e práticas humanas, podem ocorrer mediações e trânsitos diversos entre o oral e o escrito (este último na sua forma manuscrita, impressa ou digital). O discurso escrito pode ser lido em voz alta. A entrevista, uma vez pronunciada, pode ser transcrita manualmente para o papel, e depois circular através de um jornal sob a forma impressa (ou mesmo ser disponibilizada em algum site através de recursos já típicos da civilização digital). O texto de teatro, é o que dele se espera, pode dar origem a uma performance pública, oralizada. Filmada esta performance, ou digitalizado o seu roteiro, ambos podem ser disponibilizados digitalmente na Internet. [...]

As três grandes eras textuais, enfim, não cancelam as suas antecessoras. Como se fizessem parte de uma interminável composição musical polifônica que gradualmente vai oferecendo a entrada de novos temas musicais, os novos modos textuais apenas se apresentam em certo momento como uma melodia dominante que passa a se superpor e a conviver com as melodias antecedentes. Assim, a civilização digital, além de suas próprias práticas trazidas a primeiro plano, ainda contém a civilização do impresso, a civilização do manuscrito, e a civilização de oralidade. Ela é uma ‘civilização digital’ porque este novo mundo que a constitui passa a ser francamente regido pela internet, telefonia celular e recursos digitais, bem como pelo espraiamento dos computadores e práticas informacionais, com a consequente adaptação do textual a todas estas novas possibilidades. Uma civilização é digital não por ter banido a forma impressa e as práticas manuscritas, e muito menos a oralidade.


[trechos extraídos de 'A Fonte Histórica e seu Lugar de Produção'. Petrópolis: Editora Vozes, 2020, p.71].

⁠A dinâmica simultaneamente tripartida e circular entre 'produção', 'mensagem' (ou 'conteúdo') e 'recepção' (ou 'finalidade'), é pertinente a quase todos os tipos de fontes históricas. Qualquer fonte - ou melhor, qualquer objeto, texto ou criação humana que está prestes a ser constituída pelo historiador como fonte histórica - visou na sua origem (no momento da sua produção) uma recepção ou finalidade, em vista da qual foi elaborada a especificidade do seu conteúdo. Não encontro melhor imagem para falar desta peculiar dialética - capaz de articular circularmente estres três polos - do que a contraditória ideia de um 'triângulo circular da fonte'


[trecho do livro 'A Fonte Histórica e seu Lugar de Produção'. Petrópolis: Editora Vozes, 2020, p.45].

⁠.... A primeira vez que ele achou que Lua queria comê-lo foi em seu próprio enterro. Não no seu enterro definitivo. É que, no meio do choro da viúva, em pleno velório, ele – o defunto – acordou de mais um dos seus ataques catalépticos. Adiou a morte, portanto. Não é preciso dizer que foi um Deus nos acuda! O morto voltava ao mundo dos vivos! Depois um doutor de gaveta declarou, para a rádio local, que um ataque cataléptico não era coisa assim tão rara. Podia ser novidade lá – pr’aquela “gentinha de interior”... – De qualquer maneira, o “Seu Dino” ficou conhecido no lugarejo. Não é sempre que se tem notícia de um ataque daqueles, cata-o-quê, mesmo? Enfim! Não é todo dia que um vizinho nosso, da mesma cidadezinha no interior, morre e depois volta à vida


[trecho inicial do conto 'Chiclete de Lua', publicado pela revista Desenredos, Ano III, nº10, 2011]
http://desenredos.com.br/10prs_dassuncao_295.html

CAPELA


⁠Estourou a Capela
o Paraíso
ruiu por terra

Anjos despencaram
dos candelabros.
Partiram-se,
em cristais singelos.
O dedo de Deus
manchou-se de Adão
Maria? Enamorou-se
e finalmente foi feliz

Longe e perto
sem nenhum aviso prévio
ou profecia apocalíptica,
estourou a Capela.
O Paraíso,
ruiu por terra

Ruiu pela Terra, o Paraíso
Despencou suave
Como uma fruta

Caiu sem luta,
a Capela,
tão frágil e bela
como uma mulher apaixonada
que enfim se entrega

Estourou a Capela
como uma gruta
que se abre ao amor vertigem
sem vergonha de não ser mais virgem

E os homens de boa vontade
e de boa vizinhança
gritaram, em tom-milagre
e sem mais trombetas:

! Estourou a Capela
O Paraíso
Ruiu por terra!

E uma nova humanidade brotou dos escombros
e dos joelhos dos fiéis
ergueram-se mulheres plenas
e homens eretos


[publicado na revista Caleidoscópio, vol.4, nº2, 2020]

⁠Lançando mão de uma metáfora, poderíamos imaginar um campo disciplinar associado ao universo das ciências sociais e humanas como um sistema solar no qual, - em torno da matriz disciplinar fixa - gravitam os grandes planetas paradigmáticos. Mas seria preciso imaginar que haveria também aqueles que habitam “ilhas espaciais” situadas entre dois planetas, e que tomam emprestadas características de dois ou mais mundos, e outros mais que preferem viver solitariamente em pequenos meteoros errantes. E há ainda os que não possuem pouso fixo, e que vivem em trânsito. De todo modo, seja para viver em um dos planetas paradigmáticos, ou entre eles ou nenhum deles, todos os habitantes deste universo metafórico estariam habituados a este “viver entre mundos”. Aqui, não seria possível fazer boa carreira sem falar certo número de idiomas teóricos, ou sem dominar uma “arte da tradução” que possibilite efetivamente a comunicação entre os pares e planetas teóricos.


[texto extraído de 'Teoria da História, volume 1: Conceitos e princípios fundamentais'. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.180].

⁠As ciências humanas e sociais são francamente multiparadigmáticas. Os contingentes de cientistas sociais e humanos associados aos diversos paradigmas – sejam historiadores, antropólogos, sociólogos, geógrafos, psicólogos, economistas ou outros – “habitam mundos diferentes” no interior de uma mesma disciplina. Um determinado historiador vive em um mundo no qual se embatem as “classes sociais”, outro habita um mundo povoado por “espíritos nacionais”, um terceiro vive em um planeta social que é produzido pelo somatório de indivíduos, e aquele outro perambula descompromissadamente por um universo descontínuo. Neste historiador das relações de gênero, a “sexualidade” (o conjunto de fatores que determinam o “masculino” e o “feminino”) constitui um pacote de dados que se impõe pela própria natureza; mas para aquele outro, não é apenas o “gênero” que é histórico, mas até mesmo o sexo, em última instância, é uma construção social. Há ainda os que habitam mundos povoados por “raças” de homens, e aqueles que, no limite, caminham por paisagens nas quais é possível vislumbrar em cada átomo individual a diversidade humana.

Esta propriedade dos cientistas de “viverem em mundos diferentes”, conforme as visões teóricas que conformam suas maneiras de pensar, não é apanágio das ciências sociais e humanas, e é também atributo dos cientistas da natureza e dos saberes exatos . O cerne da questão, todavia, encontra-se no modo como uns e outros encaram esta mesma situação. Além de serem muito mais acentuados nas ciências humanas e sociais esta convivência e o intenso trânsito entre diversificadas teorias, o fato é que os cientistas sociais já se habituaram há muito a este “viver entre mundos”. Os cientistas sociais, habitantes de uma diversificada federação de planetas teóricos, tornaram-se excelentes tradutores uns dos outros, e exercem desde há muito uma sofisticada diplomacia teórico-metodológica.


[texto extraído de 'Teoria da História, vol.1 - Conceitos e princípios fundamentais'. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.178-179]

⁠SOBRE O ENCASTEALMENTO TEÓRICO


Uma teoria criada ou desenvolvida de acordo com o mais maleável e aberto espírito científico, se cair nas mãos rígidas de certa escola ou grupo de teorizadores-doutrinadores, pode terminar por ser tomada como como recanto a partir do qual se edificará o mais intransponível dos castelos medievais. A princípio são erguidas as torres, com a sua altivez ameaçadora. Depois começa a surgir um castelo, com suas espessas paredes teóricas. Em torno dele, cava-se um fosso de água parada, que logo será habitado por crocodilos prontos a devorar estrangeiros incautos, com a potente dentição formada pelos seus ‘argumentos de autoridade’. Uma sombria ponte levadiça será o único ponto de contato entre o castelo teórico e o mundo, mas apenas para permitir a entrada de víveres, daquilo que reforçará a doutrina. Os eventos que confirmem o que já foi dito serão sempre bem recebidos, como víveres dos quais dependerá a eterna revitalização da doutrina; os demais, ou serão ignorados, ou atirados aos crocodilos. No interior do castelo teórico, será observada uma regra mais rigorosa do que a dos beneditinos. Bem acomodado em uma espécie de altar, e ao invés dos materiais que antes se prestavam a uma livre reflexão teórica, terá surgido um dogma. As tábuas de leitura da realidade, instrumentos para se enxergar a complexidade real de certa maneira e para reelaborar continuamente esta ‘visão de mundo’ que é a teoria, transformaram-se agora em ‘tábuas de certezas’, em mandamentos para serem seguidos e recitados . Eis uma Doutrina. Inscritos na pedra, os mandamentos não poderão mais ser questionados e nem retificados, e aqueles que futuramente insistirem em fazer adaptações na “Lei” serão, imediatamente, inseridos no “livro dos heréticos” ou tratados como apóstatas. Contra as teorias rivais, já não se direcionarão debates científicos, mas sim verdadeiras “Cruzadas” e “guerras santas”. Já no interior da teoria que se converteu em doutrina, reinará doravante a paz das águas paradas, propícias para o ritual de batismo. O ‘fetiche do autor’ poderá ser convocado para a cerimônia de sacralização dos sacerdotes da nova religião. Já nem mais teremos um Castelo, talvez um Templo, com seus próprios deuses.


[texto extraído de 'Teoria da História, vol.1 - princípios fundamentais'. Petrópolis Editora Vozes, 2011, p.254-255]

IANOMÂMI



⁠Ianomâmi,
Procura-se quem te ame.
Quem mergulhe nas tuas folhas
Quem respire nas tuas águas
Quem perceba nos teus frutos
A natureza que se perde
E que se ganha
Em quem te chame,
Ianomâmi

Procura-se governante
Que abra mão de governar
O índio, a criança, o amante.
Procura-se represa
Que não mais impeça o rio
De correr seu livre curso.

Ianomâmi,
Procura-se quem te ame,
Procura-se quem te chame.

Quem te chame,
Procura-se Ianomâmi.
Não mais para enfeitar gaiola
Que se mostre em ave-rara
Nas coloridas feiras de Antropologia.
Procura-se, quem tocado
Pelo Sol e pela Lua
Te liberte feito um pássaro

Ianomâmi,
Procura-se quem te chame
Quem depois de percorrer
Tantas estradas de pedra morta
Prefira as trilhas da floresta
Vivas, úmidas, sonoras

Procura-se tal caminhante
A quem, nu e luminoso,
Se transforme em Ianomâmi


[Publicado na revista Entreletras, vol.12, n°01, 2021]
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⁠Na historiografia, há “relativismos” e relativismos. Concordar com a posição que reconhece as implicações da relatividade de todo ponto de vista para a História, e com ao fato de que a historicidade também atinge radicalmente o próprio historiador, não deve ser pretexto para considerar a historiografia inoperável, ou mera redução ao discurso.

O “relativismo absoluto” – se pudermos utilizar essa paradoxal expressão no sentido de um 'relativismo radical' que termina por se voltar contra si mesmo – no limite pode considerar que no decurso da historiografia só há opiniões, todas válidas, e que estas diversas opiniões e análises que emergem dos trabalhos dos historiadores estão sempre destacadas umas das outras, presas aos seus Presentes e às subjetividades pessoais de cada historiador. Este tipo de relativismo leva de fato a uma inoperância. O relativismo útil, contudo, é aquele que – ainda que considere a relatividade de cada posicionamento historiográfico e análise – reconhece que na Historiografia há algo que se acumula e que contribui dialogicamente para as futuras análises historiográficas. A Historiografia está repleta de análises sobre eventos históricos específicos que hoje já são descartadas, por terem sido refutadas empiricamente através das fontes ou por não terem sobrevivido no plano de logicidade de suas argumentações à luz de novos conceitos e desenvolvimentos das reflexões historiográficas.

Diria o “relativismo absoluto”, talvez, que estas posições que indicamos como “descartadas” são tão válidas quanto outras, pois são pontos de vista como os demais. Mas rigorosamente não é assim. Tanto existem as posições e análises historiográficas que vão sendo descartadas ao longo do desenvolvimento da historiografia por falhas irrecuperáveis no nível empírico-lógico, ou em função de descobertas irrefutáveis, como existem análises interessantes e válidas que vão se acumulando no decorrer da história da historiografia, alimentando outras, abrindo caminhos, permitindo que haja um acúmulo maior de complexidade que permite dizer que a historiografia relativa a certo problema histórico examinado não deixa de progredir de alguma maneira. Não se trata de um “progresso” no sentido iluminista, de verdades irrefutáveis que vão superando outras, mas de um progresso ao nível de acúmulo de complexidades, de repertórios de análises, de enriquecimento dos desenvolvimentos conceituais e metodológicos. Não há por que negar este progresso teórico-metodológico – ou, se se quiser, este “enriquecimento teórico-metodológico” que vai beneficiando de uma maneira ou outra a historiografia à medida que ela recebe mais contribuições pertinentes.

[trecho extraído de 'Teoria da História, vol.2 - Os primeiros paradigmas: positivismo e historicismo'. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.187]

⁠Como muitas coisas na história, a História Científica também teve os seus começos pequenos, por vezes mesquinhos, as suas concessões ao poder, suas articulações a projetos de dominação, suas acomodações, ambiguidades, hesitações e recuos. Seja através do Positivismo ou do Historicismo, podemos vislumbrar o curioso paradoxo de que a ‘revolução historiográfica’ do século XIX não deixa de ter em seus inícios alguns aspectos bastante conservadores. Seu mundo contextual será o do assentamento da burguesia pós-revolucionária no poder, após os fracassos do projeto mais radical da Revolução Francesa e da derrocada definitiva da expansão napoleônica, sem mencionar o contexto decisivo da consolidação dos grandes estados nacionais que precisavam agora exercer um controle mais efetivo sobre a sua população, sobre o seu território e sua imagem.

O ambiente político e social que oferecerá uma confortável base de assentamento para o novo tipo de historiografia é aquele gerado pelo compromisso entre a burguesia industrial, as monarquias constitucionais e os setores aristocráticos que conseguiram se adaptar à nova sociedade industrial, de modo a conservar ao menos alguns privilégios. Além disso, de agora em diante já não será mais possível, à nova coligação de poderes políticos, ignorar os setores populares, ao menos como uma força social que precisa ser adequadamente manipulada e conduzida. Os sistemas disciplinares e as tecnologias de controle precisarão ser cada vez mais aperfeiçoados, de modo a atingir maior eficácia com mais sutileza. Mais do que nunca, o Poder precisa se assenhorear do Discurso. Éneste grande contexto que a nova historiografia encontrará seu especial momento de fecundidade, e as possibilidades de estender sua permanência para o futuro.

É claro que, ao lado destes começos pequenos e por vezes mesquinhos, a nova História Científica também surge em um momento histórico no qual começam a aflorar pequenas centelhas de esperanças partilhadas pelos mais diversos grupos sociais que haviam conseguido se fazer ouvir nos movimentos revolucionários iniciados na França e nos Estados Unidos da América, e que depois se expandem para o resto da Europa e para a América Latina. Vive-se também, neste momento, uma nova fase de confiança no Progresso da humanidade, tão bem expresso pelas novas descobertas científicas e invenções tecnológicas. A História Científica, se de um lado se liga à realidade política através de liames por vezes conservadores, é por outro lado um produto da segunda Modernidade europeia.

[texto extraído de 'Teoria da História, vol.2 - os primeiros paradigmas: Positivismo e Historicismo'. Petrópolis: Editora Vozes, p.12-13].

⁠A palmeira, já a encontraram pronta. Tornou-se o imponente símbolo da conquista da libertação; Espalhadas no segredo da Serra da Barriga, as palmeiras se transfiguraram em fortificações naturais e simbólicas para proteger todos os negros que lutavam pelo direito de serem livres, e que morreram por isso - transformando-se, como Zumbi dos Palmares, em símbolos eternamente vivos da consciência negra. As camélias tiveram de ser construídas - ou importadas. Eram exóticas flores trazidas do Oriente e que foram cultivadas por negros aquilombados nos solos do Novo Mundo. A liberdade respira por todas as suas pétalas - inclusive a liberdade de se recriarem em uma terra que terá lhes parecido estranha. Liberdade construída sobre o desafio de se familiarizarem com esta terra, de torná-la sua. De a transformarem em uma outra terra.

[trecho extraído do livro 'A Construção Social da Cor". Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.222-223]

⁠A ideia de que um dia se concebeu a existência de raças dentro da espécie humana provavelmente parecerá muito estranha e primitiva em um futuro no qual se tenha realizado algo mais próximo a uma verdadeira justiça social, pois no seu aspecto mais irredutível o que existe é uma só raça: a raça humana.

[trecho extraído do livro 'A Construção Social da Cor". Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.218]

⁠Um livro, não importa qual seja, insere-se necessariamente em uma complexa rede de poderes e micropoderes. Como texto literário, torna-se facilmente espaço de acesso e de interdições a competências leitoras várias - fechando-se àqueles que não compreendem seus códigos ou que não compartilham o idioma comum à comunidade lingüística de seus leitores preferenciais, ao mesmo tempo em que se entreabre, nos seus diversos níveis, àqueles que podem apreender alguns de seus sentidos possíveis. Como objeto mesmo, o livro se oferece menos ou mais generosamente àqueles que podem adquiri-lo ou tomá-lo emprestado, ou àqueles que podem suportar ou sentir-se confortáveis diante das estratégias editoriais que lhe dão forma e materialidade. Como depositário de um discurso, na verdade de muitos discursos, o objeto-livro mostra-se por fim interferente e interferido, relacionando-se ao jogo de poderes e micropoderes que afetam a sociedade que contextualiza a sua produção e circulação.


[parágrafo inicial do artigo 'Um livro manuscrito e seu sistema de poderes e micropoderes'. revista Em Questão, vol.12, n2, 2006, p.273-296]

⁠A História é a ciência dos seres humanos no espaço-tempo. Nela, tanto são estudados homens e mulheres bem situados em um momento e em um lugar social muito bem definidos [e não necessariamente um só espaço-tempo, pois no caso da História Comparada podemos analisar simultaneamente diversos lugares-tempo], como também devemos considerar que os próprios historiadores que realizam esta ciência estão eles mesmos situados no seu próprio espaço-tempo. O espaço-tempo dos homens e mulheres define a História nas suas duas pontas

⁠O Cinema é interdisciplinar - e interartístico - por excelência. Dificilmente poderia ser de outra maneira. Ainda que excepcionalmente tenha contado com cineastas interdisciplinares - como o multiartista britânico Charles Chaplin, que foi diretor, roteirista, ator, músico e produtor de suas realizações - o modelo essencial do Cinema é certamente o da equipe interdisciplinar. Enquanto um laboratório de Microbiologia costuma contar com uma equipe formada exclusivamente por microbiologistas, já o set cinematográfico congrega necessariamente uma grande equipe formada por artistas, profissionais e técnicos ligados às mais diversas especialidades, sem contar o trabalho prévio realizado pelo roteirista e o trabalho posterior do montador e de outros profissionais que trabalham na edição da obra fílmica. No set, teremos também a presença de certos campos artísticos e técnicos criados ou aperfeiçoados especialmente para o Cinema, como a Fotografia. A isso tudo se junta a Cenografia, a Música, e outros campos artísticos já tradicionais, quando não a Literatura, nos casos em que o roteiro é extraído de alguma obra literária. Se o filme é histórico ou biográfico, também incluirá o trabalho de pesquisadores. Por fim, os atores e atrizes! - e toda a equipe de diferentes profissionais que se responsabilizam pelas suas imagens, indumentária, maquiagem, e tantas outras coisa mais.


[extraído de 'Interdisciplinaridade - na História e nos demais campos de saber'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019, p.98]

⁠A interdisciplinaridade entre um campo de saber e os demais que o cercam, que com ele se interpenetram ou interagem, pode se dar através de certas instâncias que podemos entender como 'pontes interdisciplinares'. Uma disciplina pode dialogar com outra através dos seus aportes teóricos e dos conceitos em comum [a ponte interdisciplinar da 'Teoria']. Pode incorporar, integrar ou partilhar procedimentos metodológicos que já estão bem desenvolvidos em uma disciplina irmã, ou mesmo em uma vizinha distante [ponde interdisciplinar do 'Método']. Pode assimilar padrões e fórmulas expressivas que também constituem o discurso da outra. Diversos campos de saber, além disso, encontram consistentes caminhos interdisciplinares através das suas temáticas de estudo - ou seja, através de certas coincidências entre seus campos de interesse // As redes profissionais que se referem a cada campo de saber, por outro lado, podem se interpenetrar de muitas maneiras, e cooperações diversas podem ser estabelecidas... [...] Cada um destes âmbitos - Teoria, Metodologia, Discurso, campos de interesses temáticos, rede humana, espaços intradisciplinares - pode se apresentar aos pesquisadores de um campo como importantes 'pontes interdisciplinares' capazes de estabelecer diálogos entre os diversos saberes


[extraído de 'Interdisciplinaridade - na História e nos demais campos de saber'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019, p.77]

⁠Todo aquele que adentra um campo de saber - do seu mais prestigiado nome ao seu mais humilde praticante - já passa imediatamente a interferir nele, mesmo que de forma indelével ou imperceptível. O mais iniciante estudante de graduação, os leitores externos das realizações produzidas no campo - e não apenas os renomados pesquisadores, cientistas e autores - todos produzem coletivamente o campo ao integrar a sua rede humana. Não há posição ou contribuição, por singela que seja, não repercuta de alguma maneira no campo. Podemos não nos dar conta de cada contribuição atomizada, mas certamente a influência de cada um e de todos pode ser entrevista nas lentas ou súbitas mudanças de temáticas, de preferências teóricas, de escolhas metodológicas; Um campo de saber, enfim, não se faz apenas das suas obras magistrais, mas também das contribuições que se estabelecem na média ou que se deixam ficar nos recantos mais obscuros, das tendências que se afirmam ou se revertem em vista das ações da massa de pesquisadores que constituem o campo disciplinar e da recepção dos leitores que completam o processo de circulação de saber.


[texto extraído de 'Interdisciplinaridade - na História e em outros campos de saber'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019, p.71],

⁠OCASO


O sol cansou-se do firmamento
(todas as tardes se cansa)
Precipitou-se sobre o mar
dando ao mundo a impressão
de que iria se afogar

Um nadador (parece) pretendeu salvá-lo
Foi nadando ao horizonte
com suas braçadas de sete léguas
Foi também se pondo (como se fosse um astro)
até que se concluísse
seu próprio ocaso

E sumiram,
sol e nadador, no pretérito da noite

O Sol, no entanto
(e na manhã seguinte),
ergueu-se por trás do mundo
enquanto o nadador
não teve fôlego para tanto ...


[Publicado pela revista Simbiótica, vol.8, n°2, 2021]