Coleção pessoal de apatiatropical
Quando o tempo não tinha mais tempo, quando a esperança já estava sepultada, quando minha mente estava há muito deteriorada, quando eu não mais precisava, vocês roubaram palavras da parte de suas línguas que se salvava, a parte em que nunca antes haviam tocado, roubaram palavras e as despejaram frente aos meus olhos, esperando que me ajoelhasse em sinal de gratidão. Mas vocês nunca estiveram lá por mim, nunca quiseram me ouvir dizer que pra mim bastava.
Era quando meu corpo entrava em colapso e meus olhos se afogavam, quando meus pulmões se tornavam pequenos demais, quando meu coração ultrapassava a velocidade de um guepardo, era nestas catástrofes internas que eu ainda podia ver a luz. Mas a vocês só interessava o riso advindo do choro, a piada pontual a não ser perdida; comentários em série encontraram ali sua chance de glória, e bastou, em desespero, expor minha carne ao mundo que o coro ao redor se colocou a gargalhar e reduzir à própria miséria a garota da pele rachada.
Lembranças se esparramaram em minhas veias e minha mente foi transportada aos sofridos dias de um ano passado e com toda a proteção armada, com todo o peito fechado eu digo, digo que doeu.
Nada se fez, nada se faz. A saúde de um aluno só interessa aos bolsos cheios ao final do mês. De nada adiantou tentar se importar com toda aquela história de hospital, a ligação só chegou quando eu já saia de lá.
É apenas o mundo cão a mostrar que até para sofrer é imprescindível chorar. Suas palavras quando ditas não valiam nada; naquele momento eu já não mais precisava escutá-las, pois elas somente eram necessárias quando suas salivas eram desperdiçadas dizendo que era Gillete quem me patrocinava.
Do que me adianta a boêmia dos domingos de verão, se o álcool perdeu seu efeito quando eu me perdi de mim?
Do que me adianta a química a abrasar minhas entranhas, se a vida por conta própria tornou-se uma distópica alucinação em carmim?
Do que me adianta a fumaça, o trago, a catástrofe, se meus pulmões insistem em resistir a este fim?
Do que me adianta a retalhação da derme, se eu sei que a vida vai cicatrizar e mais uma vez me matar ao fim?
Do que me adianta a fuga, se até o valhacouto atirou suas culposas paredes, em pura fúria, contra mim?
Agora à procura de redenção, eu prometo e ponho assim minha honra em jogo. Prometo não mais ser feliz, se isso custa o ar de quem antes dissera ficar, mas nunca me contara sobre sua incapacidade de respirar. Prometo não mais amar, se isso custa o conforto de quem antes jurara não se incomodar. Eu, tolo pássaro, sei que nunca poderia voar, mas ainda assim quatro vezes quebrei minhas asas ao tentar, e há uma única coisa que não posso prometer, algo que não me atrevo a jurar, não posso dizer que por uma quinta vez, não voltarei a quebrar.
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui sou o alvo do rei
Aqui não sou a mulher que quero
E sei que nunca serei
Vou-me embora de Pasárgada
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Aqui a vida é dura
E com a tristeza de tal modo conivente
Que Joana, a (confrangida) de Espanha
Rainha e de astúcia inexistente
Continua a nos reverberar tristemente
Sua imagem injustiçada de frágil e inclemente
E como viverei sem amarras
Andarei de mãos dadas
Estarei do outro lado
Do lado de fora do...aquário!
Meu choro não mais será mar
E quando o amor me encontrar
Poderei enfim sem qualquer temor amar
Mandarei chamar Robespierre, Danton, Marat
Pois mesmo longe daqui, ainda terei um pequeno assunto a tratar
E mandem pintar Delacroix
O sofrer de quem um dia me fez clamar
Vou-me embora de Pasárgada
Em Pasárgada não tem nada
Aqui não existe qualquer civilização
Viver não me é seguro
E tenho comigo a convicção
De que a tantos outros também não
Já não mais temos vontades
Pois morrem na cidade as prostitutas
Que o capital mandou matar
A tristeza sempre dura
Não tem mais jeito
Se por aqui ficar
Em duas ou três noites acabarei por me matar -Aqui sou o alvo do rei-
Aqui não sou a mulher que quero
E sei que nunca serei
Vou-me embora de Pasárgada
Vou-me embora, pois desta tardia alvorada
Vejo que tudo o que me prometera Bandeira
Era uma utopia disfarçada
Vou-me embora, sonho intenso, vou-me embora, raio vivido
Mas então sua voz se calou, se dissipou em meus pensamentos e voou, voou para onde meu coração não podia te encontrar. E logo tudo o que restara de ti também decidira ir se encontrar em outro amar.
Segui também o meu caminho, deixei-me ser guiada pelas estrelas, atravessei mares, atravessei rios, mas foram os velhos ventos ao norte que me levaram ao único lugar em que poderia estar: Longe de ti, ainda aprendendo como voltar a amar.
Ovo, larva, pupa e estágio adulto: a alternância entre as fases de uma metamorfose segue um padrão linear de duração, variando insignificantemente em dias, que se tornam meses e assim uma diferente existência emerge do casulo que abrigou temporariamente um ex-alguém. Me valendo mais uma vez em puro caradurismo da mecânica do mundo, roubo para mim a semiótica e afirmo com provas e convicção que o que nos resta do passado é a pavorosa lembrança de quem fomos há um milésimo de segundo (caso prefira, converta esse tempo à duração que lhe convém). A essa altura do campeonato, se me sobrou um resquício de decência, só me resta admitir o ódio inerente àquela garotinha estragada que acreditava ter o mundo em mãos, mas nem sequer era capaz de administrar os próprios devaneios. Bom, não que isso tenha mudado drasticamente de lá para cá, mas convenhamos que as medicações aparentam surtir um melhor efeito. Apelando (como de costume) a pieguice, dou sinal verde às minhas lágrimas, e que desçam em um tom cinematográfico por essa cara maldita que não passou um dia desse ano hediondo sem levar uma boa bofetada da vida! É, há um ano eu caminhava ao entorno de um parque enquanto levava rajadas de ventos que me desnorteavam em meio a um frio meia-boca de quatro graus, agora me sento no telhado com uma bebida usurpada do armário de meus pais escutando à pavorosa sinfonia de rojões que não tem nenhuma utilidade além de acelerar meus batimentos cardíacos e impulsionar o negativismo que me lembra o calor insuportável que terei de aguentar amanhã. Neste momento deveria estar pensando em como abordarei os acontecimentos traumáticos de dois mil e dezenove nos próximos dez anos de sessões semanais de psicanálise, mas estou escrevendo como uma artista falida mantida pelos pais (sim, é isto o que sou). Afinal de contas, nem os pobres textos escaparam de todas as tragédias, há tempos não vomito a podridão que me faz de hospedeira em um texto melancólico e grotesco, já que por motivos desconhecidos tudo o que escrevo adquiriu um caráter erótico e esporadicamente crítico, minha esperança é de que sejam os tais hormônios os culpados, aliás. Enfim, nessas horas vale a pena citar meu bom e velho amigo Belchior e dizer que ano passado eu morri, mas neste ano eu não morro (espero, não suporto hospitais).
Não te demores a ir se a ti meu peso por completo recai-se. Não me mintas palavras vagas se em teu peito meu veneno guardas. Não te deixes enganar, o mais abrupto dos gelos há de degelar. A mais ferrenha rocha há um dia de se sedimentar. Meu perjuro coração há um dia de se rachar (embora já esteja aos pedaços).
Não há ritmo capaz de seguir meu compasso, vaqueiro a prender-me no laço, droga a sanar meus espasmos. Não vingo neste chão, Terra não há de me ser um lugar, meu planeta não é este, é dor a me tomar.
Não te disse, quem diria? Amor, meu caro amor, nada fácil é me amar. Juro-te aos prontos, das tarefas, é a mais árdua a se dominar.
Cravos e rosas entalam meu esôfago, para cada flor a vomitar, há um espinho tomando frente a me perfurar.
E ao final, nada há de mudar, sairemos feridos como cravos, e como rosas a nos despedaçar.
Ignomínia sorrateira, tua alma carniceira não padece ao clamor. Teu pranto incessante é de todos, o de menos valor.
Teu olhar displicente há de entusiasmar àqueles que fizeste sofrer. Teu rombo em cada peito, há de te fazer temer os reles que te volto a dizer, fizeste sofrer.
Mas não sabias, não podias contigo mesma. Ignomínia sorrateira, tua mente tão ligeira a te entristecer.
Volte logo aos braços do inferno, a estrada é longa, e o caminho, como tu, é perverso. A chama que te arde os olhos, clareia os sentidos de teus ditos servos, agora postos como o ouro, a iluminar teu martírio, libertos.
Pague agora pelos crimes que, por tamanha ignorância, jamais imaginara poder cometer.
Granada: humilde elegia
Tua elegia, Granada, a dizem as estrelas
Que furam desde o céu, teu negro coração.
A diz o horizonte perdido de tua vega,
A repete solene a hera que se entrega
À muda carícia da velha torre.
Tua elegia, Granada, é silêncio enferrujado,
Um silêncio já morto de sonhar.
Ao se quebrar o encanto, tuas veias sangraram
O aroma imortal que os rios levaram
Em borbulhas de pranto ao mar sonoro.
O silêncio da água é como um pó velho
Que cobre tuas ameias, teus bosques, teus jardins,
Água morta que é sangue de tuas torres feridas,
Água que é toda a alma de mil névoas fundidas,
Que transforma as pedras em lírios e jasmins.
Hoje, Granada, te elevas já morta para sempre
Em túmulo de neve e mortalha de sol
Esqueleto gigante de sultana gloriosa
Devorado por florestas de louros e rosas
Diante de quem vela e chora o poeta espanhol.
Hoje, Granada, te elevas guardada por ciprestes
(Chamas petrificadas de tua velha paixão)
Partiu já de teu seio o laranjal de ouro,
A palmeira extasiada do tesouro África,
Sobra somente a neve da água e sua canção.
Tuas torres são já sombras. Cinzas teus granitos
Pois te destrói o tempo. A civilização
Põe sobre teu ventre sagrado sua cabeça
E esse ventre que esteve grávido de ferocidade,
Hoje ainda que morto, se opõe à profanação,
Tu, que antigamente tiveste as avalanches de rosas,
Tropas de guerreiros com bandeiras ao vento,
Minaretes de mármore com turbantes de seda,
Colmeias musicais entre as avenidas
E lagoas como esfinges da água ao céu
Tu, que antigamente tiveste mananciais de aroma
Onde beberam reais caravanas de gente
Que te ofertavam o âmbar em troca da prata
Em cujas margens tingidas de escarlate
As viram com assombro os olhos do Oriente.
Tu, cidade do devaneio e da lua cheia,
Que alojaste paixões gigantescas de amor,
Hoje já morta, repousas sobre rubras colinas
Tendo entre as velhas heras de tuas ruínas
O sotaque dolorido do doce rouxinol .
O que se foi de seus muros para sempre, Granada?
Foi o perfume potente de tua raça encantada
Que deixando correntes de névoa te deixou:
Ou a tua tristeza é tristeza nativa
E desde que nasceste ainda segues pensativa
Enredando tuas torres com o tempo que passou?
Hoje, cidade melancólica do cipreste e da água,
Em tuas heras antigas se detém a minha voz.
Afunde tuas torres!
Afunde tua velha Alhambra
Que já murchinha e quebrada no monte se queixa,
Querendo desfolhar-se como flor de mármore.
Invadem com a sombra maciça os teus ambientes!
Esquecem a raça viril que te formou!
E hoje que o homem profana o teu encanto sepulcral,
Quero que entre tuas ruínas adormeça o meu canto
Como um pássaro ferido por um caçador astral
Tradução de Mª Clara M.
A Monja Cigana
Silêncio de cal e mirto.
Malvas nas ervas finas.
A monja borda goivos-amarelos
sobre uma tela de palha.
Voam na aranha cinza,
sete pássaros do prisma.
A igreja grunhe de longe
Como um osso pança acima.
Como borda bem! Com que graça!
Sobre a tela de palha,
ela quisera bordar
flores de sua fantasia.
Que girassol! Que magnólia
de lantejoulas e fitas!
Que açafrões e que luas,
no mantel da missa!
Cinco toranjas se adoçam
na cozinha próxima.
As cinco chagas de Cristo
cortadas em Almería.
Pelos olhos da monja
galopam dois cavaleiros.
Um rumor último e surdo
lhe descola a camisa,
e ao mirar nuvens e montes
nas árduas distâncias,
quebra-se o seu coração
de açúcar e lúcia-lima.
Oh, que planície íngreme
com vinte sóis acima!
Que rios postos de pé
vislumbra sua fantasia!
Mas segue com suas flores,
enquanto que de pé, na brisa,
a luz joga xadrez
alto da gelosia.
Tradução de Mª Clara M.
A balada da água do mar
O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.
– Que vendes, ó jovem turva,
com os seios ao ar?
– Vendo, senhor, a água
dos mares.
– Que levas, ó negro jovem,
mesclado com teu sangue?
– Levo, senhor, a água
dos mares.
– Essas lágrimas salobres
de onde vêm, mãe?
– Choro, senhor, a água
dos mares.
– Coração, e esta amargura
séria, onde nasce?
– Amarga muito a água
dos mares!
O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Tenho medo de perder a maravilha
de teus olhos de estátua e aquele acento
que de noite me imprime em plena face
de teu alento a solitária rosa.
Tenho pena de ser nesta ribeira
tronco sem ramos; e o que mais eu sinto
é não ter a flor, polpa, ou argila
para o gusano do meu sofrimento.
Se és o tesouro meu que oculto tenho
se és minha cruz e minha dor molhada,
se de teu senhorio sou o cão,
não me deixes perder o que ganhei
e as águas decora de teu rio
com as folhas do meu outono esquivo.
LA LLUVIA
La lluvia tiene un vago secreto de ternura,
algo de soñolencia resignada y amable,
una música humilde se despierta con ella
que hace vibrar el alma dormida del paisaje.
Es un besar azul que recibe la Tierra,
el mito primitivo que vuelve a realizarse.
El contacto ya frío de cielo y tierra viejos
con una mansedumbre de atardecer constante.
Es la aurora del fruto. La que nos trae las flores
y nos unge de espíritu santo de los mares.
La que derrama vida sobre las sementeras
y en el alma tristeza de lo que no se sabe.
La nostalgia terrible de una vida perdida,
el fatal sentimiento de haber nacido tarde,
o la ilusión inquieta de un mañana imposible
con la inquietud cercana del color de la carne.
El amor se despierta en el gris de su ritmo,
nuestro cielo interior tiene un triunfo de sangre,
pero nuestro optimismo se convierte en tristeza
al contemplar las gotas muertas en los cristales.
Y son las gotas: ojos de infinito que miran
al infinito blanco que les sirvió de madre.
Cada gota de lluvia tiembla en el cristal turbio
y le dejan divinas heridas de diamante.
Son poetas del agua que han visto y que meditan
lo que la muchedumbre de los ríos no sabe.
¡Oh lluvia silenciosa, sin tormentas ni vientos,
lluvia mansa y serena de esquila y luz suave,
lluvia buena y pacifica que eres la verdadera,
la que llorosa y triste sobre las cosas caes!
¡Oh lluvia franciscana que llevas a tus gotas
almas de fuentes claras y humildes manantiales!
Cuando sobre los campos desciendes lentamente
las rosas de mi pecho con tus sonidos abres.
El canto primitivo que dices al silencio
y la historia sonora que cuentas al ramaje
los comenta llorando mi corazón desierto
en un negro y profundo pentagrama sin clave.
Mi alma tiene tristeza de la lluvia serena,
tristeza resignada de cosa irrealizable,
tengo en el horizonte un lucero encendido
y el corazón me impide que corra a contemplarte.
¡Oh lluvia silenciosa que los árboles aman
y eres sobre el piano dulzura emocionante;
das al alma las mismas nieblas y resonancias
que pones en el alma dormida del paisaje!
Confusão
Meu coração é teu coração?
Quem me reflexa pensamentos?
Quem me presta esta paixão sem raízes?
Por que muda meu traje de cores?
Tudo é encruzilhada!
Por que vês no céu tanta estrela?
Irmão, és tu ou sou eu?
E estas mãos tão frias são daquele?
Vejo-me pelos ocasos,
e um formigueiro de gente
anda por meu coração.
Tradução de Oscar R. Mendes
VOLTA DE PASSEIO
Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão para a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.
Com a árvore de tocos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.
Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.
Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e mariposa afogada no tinteiro.
Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!
( tradução: William Agel de Melo)