Coleção pessoal de anonimo214
Que incompetência a minha...
Que incompetência a minha ter nascido num berço de madeira.
Que incompetência a minha ter roubado do peito uma mamadeira.
Que incompetência a minha ser morrida de rasteira.
Que incompetência a minha não ser herdeira.
Sinto-me despejada,
como lixo da humanidade.
É coisa minha,
sempre foi.
Sempre senti-me assim.
Devo ter cometido o pecado dos piores pecados,
porque,
em todos os locais pertencentes,
eu não pertenço.
Foi sempre assim,
nunca pude pertencer a lugar nenhum.
Será maluquisse minha?
Será as inúmeras expectativas que puz em locais,
nos quais ao meu ver eram pertencentes?
Ou será os próprios lugares que já eram pertencidos o suficiente para me pertencer?
É tudo tão confuso…
Eu sou confusa.
Joãozinho
Tadinho,
Tão anão,
E já se meteu em confusão.
Joãozinho não sabia falar, nem dançar,
Só sabia chorar,
E a mãe, pobrezinha,
Só ouvia, sem saber o que fazer.
Joãozinho não sabia ler, nem escrever,
Mas, sem perceber,
Não pôde nem aprender.
Joãozinho nem sabia o que era “poder”,
Mas não teve tempo de aprender,
Pois os homens fardados,
Não quiseram deixar-lhe saber.
Joãozinho nem sabia o que era um canhão,
nem quem tinha razão,
Mas sem querer,
morreu sem saber.
Havia um miúdinho,
sem nome nem passado,
nu, esquecido,
andava sozinho pela rua,
escaldante de tão gelada,
como sombra sem dono.
Tinha um corpo
feito de cortes e pedras,
parecia ter sido mastigado
por calçadas com dentes.
Era um pobre coitado,
seguido sempre
por um cão magro,
tão sofrido,
igual a ele.
Sentavam-se no pedregulho duro
à espera de um fim.
O miúdo, paciente,
esperava que o cão partisse,
descansasse no reino dos cães,
para então poder matá-la —
a fome.
O cão, por sua vez,
até aprendera a contar horas,
de tanto esperar que o miúdo,
vermelho de dor,
fechasse os olhos
e dormisse de vez.
Assim, ele saciaria a fome
com lógica cruel,
mas destino cego.
O cão não ladrava,
e não sabia truques,
era inútil.
O miúdo, por sua vez,
também não sabia nada,
nada lhe ensinaram.
Era inocente,
imprestável,
invisível ao mundo.
Ambos só serviam um ao outro,
à ninguém mais.
Certo momento...
o miúdo, já derrotado,
deitou a cabeça no granito
para poder descansar o seu corpo cansado,
o cão, desesperado,
cravou como os seus dentes podres
no peito nu do miúdo,
com dó e piedade,
pois isso ainda lhe restava.
Mas morreu também,
porque o miúdo,
coitado,
não tinha carne sequer
para alimentar um cão.