Os carros diminuem suas respectivas... Li Azevedo

Os carros diminuem suas respectivas velocidades.

Motoristas apreensivos, alguns ainda que corretos no que se refere à documentação pessoal, assim como do veículo, transitam entre cones, sob os olhares atentos de policiais em uma operação longe de ser apenas uma blitz de rotina.

Não era.

A denúncia de que um veículo Gol, de cor preta, conduzido por um indivíduo não muito alto, não muito gordo, não muito branco, não muito calvo, que usava uma camiseta não muito verde, mas que transportava não menos que 100 (cem) tabletes de maconha acondicionados no interior e nas portas do veículo, fizera com que o aparato policial imediatamente fosse colocado àquela rodovia, exatamente no horário no qual o suposto crime seria cometido.

O primeiro policial faz sinal de passagem para o veículo da frente.
Tratava-se de uma Fiat Strada, cor prata.

O segundo veículo também não é abordado, tratava-se de um Hyundai HB20, cor vermelha.

O terceiro também passou, ainda que ao lado de armas, longas e curtas, em "posição sul", aquela na qual a ponta do rifle é direcionada para baixo, dedo fora do gatilho, entretanto com a mão de apoio pronta à qualquer iminência de necessidade de uso.

- “Alvo em aproximação” - ouviram, via rádio, todos aqueles homens e mulheres que haviam deixado suas famílias em casa, suas esposas, seus maridos, seus filhos, suas mães, seus irmãos a implorarem com os olhos para que voltassem vivos para casa.
Ou, pelo menos, que voltassem.

Corações disparados, adrenalina a mil, e agora mais atentos ainda, testemunham passar por aquele bloqueio um veículo Gol, de cor preta, conduzido por um indivíduo não muito alto, não muito gordo, não muito branco, não muito calvo, que usava uma camiseta não muito verde.

Mais à frente, distante do tumulto causado pelos outros veículos, o motorista do mencionado gol obedeceu à ordem de parada.

Três policiais aproximaram-se do mesmo.

O último ficou à traseira do veículo.
O segundo um pouco à frente.
O primeiro, sem sequer piscar os olhos, orientou ao condutor não muito alto, não muito gordo, não muito branco, não muito calvo, que usava uma camiseta não muito verde, que mantivesse as mãos para o alto, em uma posição na qual fossem facilmente observadas, e indagou-o sobre a documentação pessoal e do veículo.

O motorista informou ao policial que se encontravam no porta-luvas do veículo.

Um outro policial foi acionado, e com a autorização do abordado, abriu a porta do passageiro, entretanto já com os olhos e mãos atentos ao fundo da mesma. Mas quando desviou o olhar para o motorista, identificou um objeto demasiadamente conhecido pela polícia entre suas pernas, o que fez com que o condutor movesse os braços, sabe se lá para se entregar, sabe se lá para reagir.

A droga não foi encontrada.

A arma apreendida junto ao motorista, em razão de algumas mudanças na legislação acerca do porte de armas no Brasil encontrava-se absolutamente legalizada.

O policial, que mediante a denúncia recebida, a violência e caos instalado no País, tinha menos de dois segundos para decidir entre sua vida, de seus companheiros, ou a possibilidade do contrário, fez sua escolha.

Mais uma família encontra-se sem seu homem de bem, sem pai, sem filho, sem namorado, sem companheiro, no Brasil.

Mais um policial vegeta às custas de antidepressivos, e não consegue mais sequer fechar os olhos sem eles.

E você, que acredita que a violência no Brasil se resolverá com mais violência ainda, você, que por desespero, legitimou a cultura do morro junto ao asfalto, poderia fazer parte de qualquer uma dessas famílias destroçadas.
Poderia ter sido eu.
Poderia ter sido você.
Poderia ter sido seu filho.

Ah, e no tumulto da operação, passou por entre cones e um corpo já caídos junto à rodovia, um veículo Gol, de cor preta, conduzido por um indivíduo não muito alto, não muito gordo, não muito branco, não muito calvo, que usava uma camiseta não muito verde, tranquilamente.