Último dia na terra (Parte |||) As... Thaylla Cavalcante

Último dia na terra (Parte |||)

As sacolas que estavam em minhas mãos foram ao chão sem que nem ao menos eu percebesse. Agora estou rindo ao lembrar que uma das meninas, parecia ser a mais nova, segurou a garrafa de bebida como se fosse uma boneca, enquanto eu e seu avô nos soltávamos aos poucos. Não demorou muito para que uma mulher de aparência um pouco mais velha que eu, saísse de dentro do casebre. Seu dedo trazia uma aliança igual a dele, e só então percebi o que havia acontecido. Ele nos apresentou, eu, sua velha amiga de bebedeiras, a moça que salvou sua vida no dia em que ele queria se matar. E ela, a moça que saiu da vida dele, e levou junto seu coração, fazendo com que ele desejasse apenas a morte. A esse ponto, já me parecia engraçado como tudo se encaixava. Ela me convidou para entrar, na idade em que estamos, não parece ter muito sentido morrer de ciúmes de um companheiro de longa data. Digo isso porque a casa deles era cheia de fotos, viagens, filhos, netos. Afinal, eles deixaram seu legado.
A casa era realmente minúscula. Alguns brinquedos espalhados e um punhado de poeira que parecia ter sido jogado propositalmente em cima de cada um dos móveis. 50 anos de casados. 2 filhos, três lindas netas, e uma intrusa em sua casa. Tomei uma xícara de café, odiava café. Ouvi uma música que me doeu os ouvidos e inventei algum compromisso ao ponto que me perguntaram sobre minha família. Voei casa a fora.
Hoje é meu aniversário. 83 anos muito mal vividos, agora percebo. Casa grande, três carros na garagem (não os uso a muito tempo, é certo dizer), uma piscina invejável, e uma área de lazer que daria orgulho a qualquer multimilionário. O amor de minha vida foram meus livros, uma biblioteca com aproximadamente 5000 exemplares, todo lidos, alguns escritos por mim, inclusive! Meu ateliê tem quase 2000 peças pintadas, entre folhas telas e cerâmicas, todas feita com minhas muitas horas vagas. O que mais posso dizer de minha vida? Fui uma boa advogada. Estou no livro de ouro de algumas universidades, e em minha casa tem algumas boas fotografias de viagens ao exterior. Todas sozinha, ou com pessoas sem importância o bastante para que os nomes me venham à mente.
Aquela família, a família dele, nunca precisou de muito para ser feliz, eu tive tanto e não fui. Parece clichê, não? Meu testamento é um pouco incomum por ter sido escrito e reformulado durante tantos anos de minha vida. Agora, com os olhos cheios de lágrimas peço a você, senhor advogado, meu sucessor nesse cargo. Envie para aquela família tudo que eu possuir, passe para eles meus bens, casa, carros, e principalmente, a grandeza de minha alma, se eu ainda a possuir. Neste momento, vou desligar a turbina que me mantém viva, essa coisa que chamam de respirador, minha hora já passou a algum tempo, não existe mais nada para mim nesta vida.
Quanto a ti, não seja como eu. Largue os vícios. Todos eles, entorpecentes ou pessoas, tua vida vale mais. Lembre, há tanta vida para viver, mesmo quando chegamos ao nível loucura. Ah, é essa a parte em que tudo fica interessante.
Uma boa vida.

Thaylla Ferreira {Poesias sobre um amor inatingível}