Restos mortais de mim. Morri. É. Não,... Flávia Cavalcante

Restos mortais de mim.

Morri. É. Não, não é nada disso que está pensando. Eu não morri por dentro, na verdade a minha alma está bem viva. O meu corpo morreu, a minha carne, não existe sangue em mim, nem pulso. Não existem veias, não existe coração e pulmão. Acabou. O meu físico morreu. Meu marido me assassinou. Ou cometi suicídio? Se eu disser a você que não sei porque morri, você acreditaria? Aliás, você acreditaria que uma morta pode conversar com você? Eu acho que não. Eu também não achava. Mas vamos falar um pouco sobre minha morte. A única coisa que me lembro é de uma corda. Sim, eu morri enforcada. Mas não tenho certeza se fui eu quem me matei. Eu simplesmente me lembro de uma briga com o meu possessivo marido. Lembro-me também que ele havia usado cocaína naquele dia. Eu não queria que ele usasse mais. Usei algumas vezes, mas fiquei com medo. Então brigamos. Foi um dia escuro em maio de 2003. Tinha 31 anos recém completos. Anos esse que tinha sido comemorado com minha sobrinha querida. Também lembro quando ela foi embora para longe de mim. Prometi que iria visitá-la naquela nova cidade. Nunca pude ir. Eu nunca vi minha sobrinha crescer. E por mais que lamente por isso, eu gostaria de lembrar seu nome, seu endereço, o nome da minha querida e amada irmã, sua mãe. Mas não consigo. Porém me lembro de coisas sutis, como um livro que lia no momento chamado “O diário de Sofia”. Não, não era o “Mundo de Sofia” pelo qual eu também tinha o livro. Naquela tarde fria e escura eu o lia. Fumava um cigarro e tomava um vinho. Prometi que logo a noite iria ver meus irmãos e jogaria um pouco de baralho com eles. Depois disso não me lembro muita coisa. Então morri. Língua para fora, corda no pescoço, alva como a neve. Eu, Leni Marrom, havia morrido naquela pequena casa. E deixado pessoas que se importavam comigo. Minha alma chorou ao perceber o quanto era amada. Então veio a dúvida: Eu me matei? Eu quis ver os restos mortais de mim daquela forma triste? Eu não sei e acho que nunca saberei. Não tenho consciência de quem são as pessoas que deixei sofrerem por mim, mas sei que hoje, uma especial chorou de saudade. Eu posso sentir que minha pequena e linda sobrinha chorou por mim e por tudo que deixei para trás.

Em memória de Leni Marrom, minha amada e falecida tia que morreu em 12 de Maio de 2003, e que hoje fez mais falta do que todos os dias. Queria que estivesse comigo, amada tia. Queria que fosse comprovado que lhe mataram e não que se matou. Porque eu sei, do fundo do meu coração, você nunca se mataria. Queria abraçá-la hoje, dizer o quanto me faz falta nos sábados que vinha me visitar. Ou simplesmente voltar a infância só para poder reviver tudo que vivi ao seu lado. Eu te amo.