Cecília Meireles

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Cecília Meireles (1901-964) foi uma poetisa, jornalista e professora brasileira, considerada umas das mais importantes escritoras do país, com mais de 50 obras publicadas

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles
Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Aceitação

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol forem limpos
e houver festa pelo mar,
- ir-te-ei visitar.


Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor,
- ir-te-ei ver, amor.


Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.


Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "Canção": Link

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O Menino Azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "4º Motivo da Rosa": Link

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Também é ser, deixar de ser assim.

O choro vem perto dos olhos para que a dor transborde e caia.
O choro vem quase chorando, como a onda que toca na praia.
Descem dos céus ordens augustas e o mar leva a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios, mas deixando náufragos dentro!

... Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.
... Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
... Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim? (Discurso)

Quem nasceu mesmo moreno,
moreno de vocação
gosta de mar e sereno,
de estrela e de violão.
Pode até gostar de alguém
Mas nunca deixa a solidão.

Os que sabem o que querem e querem o que têm! Sonhar um sonho a dois e nunca desistir da busca de ser feliz é para poucos!

Reinvenção

A vida só é possível reinventada.
Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas. . .
Ah! Tudo bolhas que vêm de fundas piscinas de ilusionismo... – mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.
Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcança...
Só - no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva.
Só - na trevas fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.

Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "Canção": Link

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Desenho

Traça a reta e a curva,
a quebrada e a sinuosa
Tudo é preciso.
De tudo viverás.

Cuida com exatidão da perpendicular
e das paralelas perfeitas.
Com apurado rigor.
Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo,
traçarás perspectivas, projetarás estruturas.
Número, ritmo, distância, dimensão.
Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.

Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitarás.

Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.

Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.

Leilão de Jardim

Quem me compra um jardim com flores?
borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?

... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

Não faças de ti um sonho a realizar. Vai. Sem caminho marcado. Tu és o de todos os caminhos.

Eu? - bebo o horizonte...

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "Noturno"

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Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

Cecília Meireles
Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985 (fragmento).

Nota: Trecho do poema ROMANCE DAS PALAVRAS AÉREAS

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