Millôr Fernandes

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Saudação aos que vão Ficar

Como será o Brasil
no ano dois mil?
As crianças de hoje,
já velhinhas então,
lembrarão com saudade
deste antigo país,
desta velha cidade?
Que emoção, que saudade,
terá a juventude,
acabada a gravidade?
Respeitarão os papais
cheios de mocidade?
Que diferença haverá
entre o avô e o neto?
Que novas relações e enganos
inventarão entre si
os seres desumanos?
Que lei impedirá,
libertada a molécula
que o homem,
cheio de ardor,
atravesse paredes,
buscando o seu amor?
Que lei de tráfego impedirá um inquilino
- ante o lugar que vence -
de voar para lugar distante
na casa que não lhe pertence?
Haverá mais lágrimas ou mais sorrisos?
Mais loucura ou mais juízo?
E o que será loucura?
E o que será juízo?
A propriedade, será um roubo?
O roubo, o que será?
Poderemos crescer todos bonitos?
E o belo não passará a ser feiura?
Haverá entre os povos uma proibição
de criar pessoas com mais de um metro e oitenta?
Mas a Rússia (vá lá, os Estados Unidos)
não farão às ocultas, homens especiais
que, de repente,
possam duplicar o próprio tamanho?
Quem morará no Brasil,
no ano dois mil?
Que pensará o imbecil
no ano dois mil?
Haverá imbecis?
Militares ou civis?
Que restará a sonhar para o ano três mil
no ano dois mil?

in "Pif-Paf"

Millôr Fernandes
Papáverum Millôr

Quem sabe tudo, é porque anda muito mal informado

O que o dinheiro faz por nós não é nada em comparação com o que a gente faz por ele.

Pois se penso demais. Acabo despensando tudo que pensava antes. E se não penso. Fico pensando nisso o tempo todo

Fascínio

No centro, os dois pequenos buracos se abrindo num promontório, embaixo do qual outro buraco, um pouco maior, no sentido horizontal, ao abrir, mostra o brilho ocasional de retângulos de esmalte claro, quase branco. Em cima duas contas brilhantes, cor verde-cinza, capazes de um movimento rápido e inesperado. Riscos em volta, uns mais profundos, outros menos, sinais do código do tempo representando número de anos. Cada risco um determinado número de anos. Olho, fascinado. Todo dia olho, fascinado. Colados à direita e à esquerda do círculo em que se incrustam os buracos e as contas brilhantes acima, dois pedaços mais ou menos semicirculares do mesmo material da estrutura geral servem para captar sons, como conchas de um aparelho acústico. Pontos negros, marcas, cicatrizes de acontecimentos de outra forma esquecidos. Eis minha cara.
Olho-a sempre e muito. Tenho mesmo a impressão de que jamais olhei tanto tempo, tantos anos, todo dia, uma mesma coisa. Gosto dela? Não gosto? Qual a minha opção? Só a de não olhá-la. Mas que outra se ofereceria assim, com tal intimidade, entra ano sai ano? Tenho de olhá-la para sempre e um dia. Ela me representa mais do que qualquer outra coisa, meu reflexo e minha delação, as pessoas me julgam por ela, me acusam por ela, me amam por ela e por ela me detestam. Na minúcia de seus poros, porém, só eu a conheço. E, se não a amo, não posso abandoná-la. O único afastamento que me permito é do próprio espelho, eu caminhando de costas, sem tirar os olhos dela, até que ela desapareça numa curva do quarto e eu possa ter a impressão de que nunca mais vou vê-la. Pura ilusão, porque o fascínio meu por ela é apenas igual ao dela por mim. E, ao me sentar, sozinho, para tomar um uísque no bar vazio e enquanto espero alguém, a primeira coisa que vejo é ela, ali no espelho à minha frente, esperando, melancólica, por um uísque igual ao meu, servido do mesmo jeito, ao mesmo tempo, pelo mesmo garçom.

Veja, 11 novembro 1976

Millôr Fernandes
Revista "Veja" (edições 383-395)
Inserida por Luxuryous

Todos os animais pensam, exceto o ser humano, que fala.

Assim como não se
Faz um omelete
Sem quebrar os ovos
Ninguém faz uma revolução
Sem destruir os povos.

Um dia, mais dia menos dia, acaba-se o dia-a-dia...

Não tenho medo de morrer, talvez não haja o desconhecido, haja um velho amigo.

Diplomas, títulos, PhDs! A natureza, ao fazer um ser humano competente, por acaso consulta faculdades?

P. O curso do rio, dá diploma?
R. Só se o sujeito for muito pro fundo.

P. Camisa de onze varas, vem com punho duplo?
R. Pelo contrário, vem com manga de colete.

P. Corrente marinha, serve pra amarrar cachorros?
R. Não, mas serve pra arrastar imbecis.

P. Dor de dente, dói?
R. Não, o que dói é a anestesia.

P. Na Bienal, tem fratura exposta?
R. Quando os críticos entram em desacordo.

P. Um perneta, pode passar a perna em alguém?
R. Se pode! Com um pé nas costas.

Quando o primeiro espertalhão encontrou o primeiro imbecil, nasceu o primeiro deus

A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o País. Acho que uma das grandes culpadas das condições do País, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa. Repito, apesar de toda a evolução, nossa imprensa é lamentavelmente ruim. E não quero falar da televisão, que já nasceu pusilânime

POEMINHA SEM OBJETIVO

Me elogia, vai!
Escreve um troço, aí!
Não dói não; faz de conta
Que eu morri.

Se não mudar o que faço hoje, todos os amanhãs serão iguais a ontem.

"Onde reina a burrice, a suprema burrice é ser sábio."

"A economia compreende todas as atividades do país, mas nenhuma atividade do país compreende a economia."

O perigo de uma meia verdade é você dizer exatamente a metade que é mentira.

Sou um humanista. Isso não significa ser bonzinho ou acreditar que o homem é bonzão. Significa apenas que aceito o homem como é - medroso, primário, invejoso, incapaz, acertando por acaso e errando por vaidade: meu irmão.

O que Deus fazia antes da criação do mundo, ninguém sabe. Se fez tudo isso em seis dias apenas, imaginem que imensa ociosidade, a anterior!

Se o latido dos cães chegasse ao céu, chovia osso.

Lição primeira e única – amor não é coisa para amador.

Millôr Fernandes
Millor definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 2007.

Bíblia me ensinou; "Cada coisa tem seu tempo." Paro hoje - em verdade parei ontem - o ciclo de pequenas lições de civismo para cego-surdo-mudos. Paro porque há uma hora de parar. Espero em Deus não ter que recomeçar. Foi bom sentir que alguns puderam ver, outros ouvir, uns raros se indignar. Quando surgem vozes mais competentes e aparelhadas do que a minha, cedo a vez. E posso dar ao meu leitor (na presunção de tê-Ios) descanso do enfado a que o submeti por tema, atualmente, quase irrelevante; a prepotência a serviço do crime. Paro com a melancolia de perder a admiração que tinha por dois ou três amigos. Paro com a satisfação de que, por mais erros que cometa, por mais contaminada que esteja pela metástase do país - nenhum de nós escapa - ainda é na imprensa, e quase só na imprensa, que o cidadão encontra um espaço de choque contra a insensibilidade patológica do nosso poder político-econômico.

Inserida por antomora

O importante é ter sem que o ter te tenha.

Se você não tem dúvidas é porque você está mal informado.